sexta-feira, 27 de julho de 2007

UM AÇORIANO ABANDONADO EM LISBOA...

O leitor deste Blog, já deve estar um tanto farto de ver esta cara alegre e prasenteira, mas ela não mostra nada, o que este garoto de 13 anos, estava a viver e até pode parecer que vivia feliz e contente, tratado com todo o carinho.

A verdade era muito outra !

Nascido e criado até a esta idade, numa respeitosa família açoriana de S.Miguel, rodeado de carinho de toda uma família feliz, acabou por ter de ser "exportado" dos Açores para o Continente, porque toda a sua família se estava a desmoronar...

Meu pai já tinha morrido, de tuberculose e diabetes, com 47 anos, quando eu tinha 11 anos e deixou a minha mãe em profundas dificuldades financeiras. Entretanto o "Rei" da nossa casa, médico, meu avô, o adorado Dr. Leça dos Ginetes, acaba por falecer de angina de peito, aos 73 anos e, como estava marcada a minha "exportação" para esse mesmo dia, só o pude beijar, já morto, mas deitado na cama onde faleceu, com cara sorridente, como se estivesse simplesmente a dormir, com a sua cara deitada sobre a sua mão esquerda. Mais um profundo desgosto !

Minha mãe, ainda conseguiu tirar o curso de Regente Escolar e estava a dar aulas, uns tempos antes, numa freguesia ali perto, embora tivesse de andar a pé uns quilómetros diários, para lá chegar. Com o vencimento de 250$00 mensais, aquilo não dava nem para os sapatos que os seus 5 filhos gastavam...e meu avô também tinha deixado minha avó em séria situação financeira, pelo que não nos podia ajudar...

Assim, resolveu procurar emprego em Lisboa, o que conseguiu na Santa Casa da Misericórdia, exactamente onde se faziam as extracções dos Jogos Santa Casa, e lá conseguiu enfiar as minhas irmãs, num colégio interno de freiras, ali perto do seu emprego.

Fiquei eu e meu irmão, à deriva, sem eira nem beira, à procura de sítio onde viver, mas o ordenado da mãe quase não dava para nada e foi o pior tempo da minha vida, pois tinha de estudar e ir fazendo alguma coisa para poder comer um bolo ou beber um copo de leite. Pessoa amiga, que tinha filhos mais ou menos da minha idade, mas também estavam em dificuldades, fazia os filhos pegar em molhadas de revistas, que ainda me lembro se chamava FLAMA, e vai de alombar com elas para a porta duma Igreja, lá para os lados do Marquês de Pombal. E ali ficávamos um bom bocado a apregoar a revista. Por cada revista vendida, davam-nos 50 centavos, mas com um pouco de habilidade e cortesia, sorriso estampado na cara, eu sempre conseguia vender mais do que os outros e ficava todo feliz, por poder juntar uns cinco escudos ou pouco mais, o que já dava para poder comer mais alguma coisa numa taberna qualquer, das mais baratinhas...

Depois acabei por arranjar mais um "emprego" numa casa que fabricava candeeiros, ali para a rua da Vitória, 46-48, no meio da baixa, e tanto tinha de andar a pé, por Lisboa inteira, para receber facturas atrasadas, subir e descer imensas escadas, para depois levar com a resposta de que lá fosse noutra altura...ou ter de alombar com enormes candelabros cheios de pingentes, e que só podiam ser transportados ao ombro, perante o tilintar chato daqueles vidrinhos todos, com toda a gente a olhar com cara de gozo. Mal sabiam eles que aquele pobre garoto açoriano, estava a fazer um sacrifício dos diabos, para poder comer um pastel de bacalhau como almoço... e ainda tinha de estudar para à noite, ir pegar a Escola Marquês de Pombal, lá para casa do Calvário. Aquilo era mesmo um calvário !

Mas um dia, minha mãe encontrou uma rapariga que tinha sido sua criada, quando dos tempos áureos, mulher ainda bem bonita e que nunca havia vestido farda, o que muitas vezes provocava em minha mãe ataques de histeria, porque quando ia à porta, e sendo tão bonita, toda a gente julgava que se tratasse da minha mãe...

Gozava a criada e enfurecia a minha mãe, está claro ...

Mas este "senhora" vivia ali perto da Misericórdia de Lisboa, numa casinha muito modesta do Bairro Alto, mas cheia de boa vontade, lá me arranjou um cantinho na casa, com uma mesa e cama, mas havia colocado uma cortina a tapar o resto do quarto.

Mal eu sabia, que ela se tinha tornado prostituta e dificilmente eu conseguia dormir, com tantos ais e isss, gemidos e palavrões, das suas "visitas" ! E logo eu, que nem sabia o que era uma prostituta, nem de longe nem de perto... e até lhe tinha muito respeito !

Mas a minha mãe, que também não sabia nada daquilo, lá nos empurrou para a Av. Almirante Barroso, ali para os lados do Arco do Cego, e albergou-me a mim e meu irmão Carlos, no mesmo quarto.

Felizmente que, com a ajuda dum outro açoriano, de S.Miguel, amigo de infância da minha mãe, e era engenheiro no Arsenal do Alfeite, de nome Vargas Moniz, nos conseguiu lá plantar os dois. Nós éramos os "Farias" e tratados com muito deferência, pois toda a gente sabia que éramos protegidos do patrão!

Aquilo até podia ser pior, mas era muito chato ter de ir apanhar o eléctrico às 7 da manhã, para o Cais do Sodré, todas as manhãs, para apanhar a corveta da Administração, que nos transportava para o Arsenal do Alfeite, do outro lado do rio Tejo. Á tarde, a corveta "despejáva-nos" no Cais do Sodré e lá íamos os dois de eléctrico comer qualquer coisa e depois eu teria de ir novamente de eléctrico para S.Amaro, mesmo do outro lado de Lisboa, para a Escola Industrial.

A alimentação no refeitório do Arsenal, até não é que fosse má, mas ficava muito caro para a nossa bolsa. Assim, tínhamo-nos de contentar com qualquer coisinha que ia eu buscar ao "guichet" , porque meu irmão preferia ficar sem comer, do que ir para a bicha, de braço estendido...

Infelizmente, em casa, mal podíamos comer, porque ainda era cedo para os donos da casa e muitas vezes só "bebia" uns golos de água quente com umas nabiças a flutuar, ao que chamavam de sopa...para ir apanhar o eléctrico para Santo Amaro.

Aquela falta de descanso e de comida suficiente, não me podia deixar ir muito longe e, um dia, tendo ido a uma praia do Seixal, deixei-me dormir, estampado ao Sol, mas quando acordei, nem me conseguia por de pé... Assim, fiz todo o percurso a pé, imensamente cansado, a empurrar a bicicleta, pois nem força tinha para a montar e pedalar.

Meu irmão grande entusiasta pelas coisas científicas, estava a experimentar fazer exames microscópios num aparelho por ele construído e observando a minha expectoração, logo verificou que eu estava muito doente com bacilos de Koch, embora o médico julgasse que se tratava duma simples gripe, mas perante o ensaio do meu irmão Carlos Mar, achou por bem mandar fazer um exame mais exaustivo e confirmou-se a doença... aquela malvada doença com que havia morrido meu pai uns anos antes, doença de terríveis e demorados anos de tratamento e foi por isso que fui "exportado" para o hospital do Desterro e onde se passaram os episódios rocambolescos, que descrevi no artigo "Chateado pelos ácaros".

Mas dado o saber da terrível possibilidade de contágio da doença, logo exigi que houvesse o máximo cuidado com tudo o que me dizia respeito e, felizmente, nenhum dos meus irmãos foi contagiado.

Felizmente que logo me arranjaram forma de ser "exportado" agora para um Sanatório do Caramulo, levando a tiracol a minha máquina fotográfica...como se fosse passar umas férias na montanha...o que tanto gozo deu à malta que me viria a conhecer. Mas só, ao fim de um ano de penoso tratamento de pneumotóraxes, é que os bacilos de Kock foram desactivados e comecei, muito lentamente, a ganhar vida, enquanto ia vendo muitos outros, da minha idade a socumbirem à terrível doença.

Tive o "desplante" de me vir "despir" aqui em público, pensando em tantas crianças da minha idade, que, por este ou aquele motivo, rodeadas de tudo o que é bom, com uma boa casa para viver, rodeadas de amor e carinho dos pais, não se alimentam convenientemente, e acabam também por adoecer, mas talvez não tendo a sorte e vontade que eu tive de me curar, embora tivesse de fazer um tratamento por 5 anos...

E quando vos apetecer fazer alguma asneira das grandes, lembrem-se daquele puto açoriano, de 13 anos, o Mário, que vocês conheceram via Internet.

Hoje, perto dos 80 anos e olhando para trás, não posso ter saudade alguma da minha mocidade, em especial desde o momento em que toda uma família se começa a desmoronar, como pode acontecer a qualquer um, e sentindo uma imensa vontade de viver, dou graças a Deus de ainda estar vivo e poder relembrar aqueles tempos tão distantes da minha mocidade tão amargamente e estupidamente perdida...e sem ser por minha culpa...

terça-feira, 24 de julho de 2007

E FUI CONVIDADO PARA SER PADRE...


Estava eu em 1949, internando num Sanatório, mas já em vias de cura, quando um grande amigo que também lá foi parar por esta altura, doente, de nome Fernando Gomes da Costa e que era mais ou menos da minha idade. Ele era duma família muito respeitada na Anadia, os "Irmãos Unidos" que forneciam Champanhe para todo o lado e tinham enormes adegas recheadas de pipas de belos vinhos e espumantes. Assim, quando já estávamos ambos benzinho, ele me convidou para ir fazer umas férias em sua casa e assim eu fui conhecer a sua excelente e simpática família e conhecer a sua terra, a Anadia.

Aquilo era realmente muito bonito e ele, sabendo que eu nunca tinha ido de férias a lado algum, presenteou-me com viagens de passeio a todas as zonas turísticas daquela fabulosa zona, com as suas termas, o palácio do Buçaco, com os seus lindíssmos jardins, as Termas, eu sei lá que mais, além de Leitão da Bairrada e tudo muito bem regado com os belos vinhos da região.

No Caramulo, ele havia construído um minúsculo emissor com as bobines enroladas em dois frascos de Estreptomicina, e lá íamos conversando muitos horas sobre a electrónica que nos estava a apaixonar, embora clandestinamente a usar o extremo das Ondas médias.

Muitos anos mais tarde, vim a saber que ele estava como Engenheiro Director da Estação de televisão da RTP, do Trevim, onde se manteve até atingir a sua reforma. Que belo amigo eu havia de ter, e como lhe estou grato pelo carinho que me dispensou e muito em especial a sua simpática mãe e pai !

Mas certo dia, na Anadia, ele foi convidado para assistir a um casamento de pessoa amiga, e desejou levar-me, embora sabendo que eu não conheceria ninguém da festa e talvez fosse uma estopada, mas mesmo assim, eu lá fui, até porque não tinha outra escolha...

Quando chegou a boda, a malta entrou toda de rompante pela enorme sala e eu fui ficando para trás, a ver se no fim, ainda haveria algum lugar para me assentar, mas fiquei radiante ao ver que na ponta dum "T", estava um padre muito novo, e muito simpático, talvez com mais uns 4 ou 5 anos do que eu, e até tinha assistido ao casamento, e tinha lugar vago a seu lado.

"Ora aqui estou eu nas minhas 7 quintas ", pensei eu, porque sempre me havia entendido com os padres que sempre me haviam parecido pessoas respeitáveis, boas conversadoras, bons ouvintes, bons faladores, inteligentes e até pacientes, mesmo que em qualquer altura da conversa, eu pudesse levar algum sermãozinho...

Mas aquilo não podia ser melhor ! A pouco e pouco, ele se interessou pela minha vida e veio a saber que eu estava num sanatório, embora já sem perigo de contágio e a conversa se animou imenso ! Nunca mais prestámos qualquer atenção ao barulho e altas conversas que se estavam a ouvir pela sala e ali estávamos muito entretidos os dois, como bons amigos de há muitos anos.

Foi por esta altura, no meio duma cantoria que encheu a sala, que me lembrei de meu pai, com quem talvez eu me parecesse e que, quando eu tinha 10 anos, me fazia cantar só para ele...aquela linda canção de Coimbra, chamada SAMARITANA, muito em voga naquela época, e que muitas vezes tive de cantar, para fazer as pausas necessárias e prolongadas, até que ele ficasse satisfeito. Eu sabia lá quem eram as Samaritanas, música muito admirada na época e cantada magistralmente por um jovem Dr. de Coimbra, Edmundo Bettencourt.

Lá em nossa casa, nos Ginetes, em S.Miguel, Açores, eu tinha 10 anos, mas todos diziam que tinha uma voz muita afinadinha... Só que, quando meu pai me pedia para eu cantar a Samaritana, toda a minha família abalava, sem eu entender o porquê... mas bastava-me cantar para meu exigente pai, já ficava satisfeito.




E a letra era assim:


Dos amores do redentor

não reza a história sagrada

mas diz uma lenda encantada

que o bom Jesus sofreu de amor.

Sofreu consigo e calou

sua paixão divinal

assim como qualquer mortal

um dia de amor palpitou.

Samaritana plebeia de Sical

Alguém espreitando te viu Jesus beijar

De tarde quando foste encontrá-lo só

Morto de sede junto à fonte de Jacob.

E tu risonha acolheste

o beijo que te encantou

Serena, empalidesceste

e Jusus Cristo corou.

Corou por ver quanta luz

irradiava da tua fronte

quando disseste ó bom Jesus

'Que bem eu fiz, Senhor, em vir à fonte'


Só muito mais tarde é que vim a prestar atenção à letra e entendi o porquê da minha mãe e avó, profundamente religiosas, fugirem do pé de mim, lá para bem longe, e levando com elas as minhas irmãs, também muito religiosas, para que ninguém conseguisse entender a letra da canção...

Na verdade, eu nunca havia sido muito católico, tal como meu pai, e até embirrava bastante com os enterros e com tudo quanto falasse de mortos. Para mim, só a vida contava e a amava desesperadamente.

Também doente, nessa época, no sanatório onde tive de estar 5 anos, o Sanatório Central, havia um médico muito novo e que tocava maravilhosamente guitarras de Coimbra, e se chamava ( e chama, se ainda estiver vivo) Amaro da Silva Rosa, que eu tentava acompanhar à viola, mesmo no quarto do sanatório, onde se reuniam vários doentes, ao serão. Eu era o mais novo. Outros eram médicos, pintores, caixeiros viajantes, funcionários bancários, técnicos dos CTT, etc. Era uma claque de malta muito vivida, galhofeira e de trato muito fino.

Mas a certa altura do referido casamento, no meio dumas garfadas de saboroso leitão assado e belas bebidas, ainda disse ao Sr.Prior que não entendia aquela história dos jejuns e de não se poder comer carne à sextas feiras, e dos pecados mortais, e da bula,...mas ele ouviu sempre com um sorriso estampado no rosto. O padre era mesmo simpático ! Tenho pena de já não me lembrar do seu nome...que excelente pessoa !

E seguia eu com as minhas dúvidas quanto às confissões e aos Padre-Nossos, e aos castigos divinos, e ao Inferno e ao Céu e aos pecados mortais, etc. quando a certa altura ele me pergunta:

"Porque não vem estudar para padre ? "

Fiquei um tanto atónito, especialmente por ter estado a dizer que não acreditava em muitas coisas da religião e até estar do contra, que desejava fazer da minha vida muita coisa científica, casar, etc.

Aí, ele me disse: "Pois como padre, poderá ter isso tudo, à excepção de casar e ter filhos ".

"Tá a ver, Sr. padre", respondi eu de imediato: " Eu sinto imensa necessidade de liberdade e vivo sonhando em um dia ser casado e ter os meus filhos, para os ajudar a entender a vida e a procurarem saber os porquês de tudo o que nos rodeia ", respondi eu, e ainda acrescentando: "Mas mesmo assim, com tantas dúvidas quanto a tantos dogmas, ainda continua a convidar-me para estudar teologia ? Porquê ? ".

Aí o meu simpático companheiro, parou uns segundos enquanto tentava engolir mais um pedaço de leitão, talvez ainda mal triturado...e seguido dum golo de belo vinho, e respondeu-me:

"Pois é especialmente por o ter ouvido e saber o que pensa da religião, que lhe garanto, daria um bom padre, porque sabe pensar e exprimir-se com facilidade "...

Passados estes 58 anos, ainda penso naquele simpático padre que me disseram depois, que era Dr. em Teologia e Director dum Seminário em Leiria, se bem me lembro. Como eu gostaria de me voltar a encontrar com ele e podermos continuar aquela boa conversa na boda de Anadia... E oxalá que ainda seja vivo, embora certamente com alguns 85 ou 86 anos. Que Deus o proteja, assim como me tem protegido ! Mas se já faleceu, como eu já estou próximo do mesmo, talvez nos venhamos a encontrar um dia e continuar com as minhas caturrices... e ele sorridente, a ouvir-me...

terça-feira, 17 de julho de 2007

E A PIDE BATEU-ME Á PORTA...


Era um belo dia de verão de 1960...

No meu minúsculo quintal cimentado, eu havia deixado um pequeno canteiro numa esquina, onde havia plantado um caroço de pessegueiro que muito me havia agradado e com o decorrer de poucos anos, havia nascido um lindo pessegueiro que logo, ainda miniatura, se começou a encher de lindos pêssegos e de tal forma, que o seu peso fazia vergar os seus frágeis ramos até que os imensos frutos tocavam no chão !

Aquilo até era lindo de ver !

Estava eu a deliciar-me com alguns desses frutos amarelos, doces, aromáticos e sumarentos, quando minha esposa me aparece, com ar muito preocupado, dizendo que estavam à porta uns senhores da PIDE a querem falar-me...

Naquela época, falar-se de PIDE, assustava qualquer um, mesmo que um pacato cidadão.

Estranhei bastante essa visita, até porque sendo radio-amador, só eram concedidas licenças a quem não tivesse cadastro politico "sujo" e mais, como já estava empregado na Radio Europa Livre, RARET, só lá entrava quem não tivesse tido problemas políticos.

Assim, embora curioso, mas um tanto contrafeito, lá fui à porta e encontro 4 rapazes, mais ou menos da minha idade, 47 anos, em que um me mostra o seu cartão da PIDE, com um sorriso amarelo estampado no rosto... e me diz que havia corrido Benavente naquele domingo de festa da terra, à procura de quem lhes pudesse reparar o carro, um VW carocha, que tinha uma avaria grave e lhes tinham informado que em Benavente e, num Domingo, só havia uma pessoa capas de tentar dar-lhes uma ajuda e, essa pessoa seria eu...

"Isto é que vai uma açorda..." , pensei eu, ainda com os restos dum pêssego na mão, toda besuntada....

Eu era muito conhecido na terra e muita gente sabia que eu estava sempre metido não só em questões electrónicas, mas também eléctricas e mecânicas, com antenas em cima do telhado e outras mecânicas estranhas...

Quem já viu um VW Carocha, sabe perfeitamente, que tem o motor atrás e a correia de ventilação e carga de bateria, está logo ali à vista.

Aberto o compartimento traseiro, onde se encontrava o motor, logo verifiquei que se tinha partido o tambor da correia de arrefecimento do motor e carga da bateria. Como o motor tinha vindo a trabalhar sem arrefecimento algum..até dava estalos e cheirava muito a quente... deitando fumo por todos os lados ! Estava ali uma boa açorda....

Aquilo me pareceu realmente muito complicado, pois o ideal seria tirar o motor fora e colocar um novo tambor, coisa que eu não poderia fazer sozinho, nem obter o material necessário ...mas pensei que sendo um trabalho muito complicado para mim, seria preferível tentar soldar o tambor, até porque tinha construído já há tempos, uma máquina de soldadura eléctrica e convidei-os a empurrarem o carro para as traseiras da casa, onde eu tinha estado minutos antes, a saborear uns belos pêssegos, o que eles logo fizeram e onde eu poderia ligar a máquina da soldadura mais facilmente.

Havia que centrar o tambor exactamente no sitio, o que foi facilitado por ele se ter partido perto da porca de cambota e lá deixado uma rebarba, ali mesmo à mão. Assim, só poderia ser ali naquela posição e vai de pingar aqui, depois ali, mais pancadinha dum lado, mais pancadinha do outro, para a manter o mais desempenada possível e lá fui soldando o melhor possível o tambor da correia, sempre com cuidado para que o motor não se incendiasse com as faíscas da soldadura... para o que havia arranjado uns trapos encharcados em água fria, para tapar o carburador e tubagem de combustível.

Enquanto estava a fazer aquele trabalho, um deles, vendo tantos pêssegos bem maduros e aromáticos, ali mesmo à mão, pediu-me se podia comer um e como foram postos a-vontade, atiraram-se a eles, como se já não comessem há muitos dias... e sempre a elogiá-los de qualidade ! Aquilo era bom demais !!!

Ao fim duma hora de tentativas e reforços das soldaduras, colocando panos encharcados de água fria, para tentar poupar o estanque da cambota, foi colocada a correia e dada ordem de marcha ao motor, que logo arrancou com a sua ventilação e carga e ali esteve um certo tempo a funcionar para eu me aperceber da resistência das precárias soldaduras.

Tudo parecia o suficiente para que eles pudessem seguir viagem, embora lentamente, o que aconteceu de seguida, indo eles todos besuntados dos meus ricos pêssegos, mas antes de partirem ainda me deixaram um cartão, informando-me de que se algum dia tivesse problemas políticos, bastaria falar para aquele número e lá se foram embora.

E lá fiquei a pensar, "fazer o bem sem ver a quem..." , mas ainda hoje nem sei se teriam chegado ao seu destino, porque nunca mais ouvi falar deles.

E ESTRAGARAM O EMISSOR DA LEGIÃO PORTUGUESA...

A Legião Portuguesa foi por volta de 1945, uma actividade política-militar, a que o nosso Presidente Salazar, muito acarinhou.

Era Legionária, qualquer pessoa que pudesse dedicar algum tempo da sua actividade diária, em aprender a conduta militar e estar pronta a qualquer eventualidade que pusesse em perigo, o nosso governo de então.

Assim, de todos os quadrantes civis, apareciam pessoas interessadas, até porque as suas fardas lhes davam um certo gabarito e estatuto social. Eram pessoas a quem se tinha de ter um certo respeito...

Mas eram os "parentes pobres" do regime e eram escolhidas as pessoas mais gradas das terras, para os orientar, reunir e ensinar, sempre protegidas por intenso secretismo.

Entre as várias actividades que tinham, eles tinham de se treinar em comunicações e o governo de então, só lhes conseguiu arranjar equipamentos emissores e receptores baratos e, como os seus conhecimentos teóricos e práticos, eram muito reduzidos, ou até nulos, as suas comunicações não podiam brilhar, como eles tanto desejavam.

Por essa altura, até os radioamadores já possuíam equipamentos que se comportavam perfeitamente ao longo de todo o país, pelo que era fácil escutá-los, em especial na banda dos 80 metros, 3730 KHz, conversando e trocando as suas experiências e os seus conhecimentos.

O receptor mais barato que existia naquele tempo, era o ECHOPHONE, EC-1B, receptor especialmente feito para as ondas curtas e metido dentro duma caixa metálica, e dava para funcionar em todas as várias frequências dos radioamadores, e não só, mas estes operadores, há muito que os tinham substituído por unidades cada vez melhores. No entanto, como a Legião Portuguesa, só funcionava nos 80 metros, ali perto dos 3850 KHz, aquilo era perfeitamente utilizável e tinha muito boa sensibilidade, ou seja, podia escutar até estações muito fracas.

Mas a falta de preparação tecnológica para as telecomunicações, não contribuia em nada, para que tivessem as comunicações facilitadas, até porque, ao que parece, pouco ou nada sabiam das antenas mais recomendáveis.

Assim, e em especial para os emissores, aquilo era uma lástima e o governo havia mandado construir imensos emissores de muito fácil operação, sem qualquer botão de afinação no seu exterior, para que os inexperientes funcionários, não os pusessem em perigo. Aquilo era um caixote de alumínio, em que todas as afinações só poderiam ser feitas por pessoal adestrado, que não abundava, até por que teriam de ser também Legionários, e tinham de usar chaves de fenda, depois de desencravar os seus comandos. Para facilitar, ele só irradiava numa frequência, a cristal.

Possivelmente até teriam informado os Comandantes, para que ninguém tivesse acesso ao seu interior, para que não fosse conhecida a sua frequência...coisa estúpida, dado que qualquer receptor que tivesse a banda dos 80 metros, os poderia ouvir...

Como a sua frequência de trabalho, era muito próxima da dos radioamadores, eles bem podiam ouvi-los, mas não podiam falar com eles nem pedir-lhes conselhos. Mas como aquela banda, tinha boa propagação diária, e para todo o país, sempre havia muita malta na conversa sobre o que estava a fazer, as antenas que usavam e experimentavam a toda a hora.

Perante as facilidades com que os legionários verificavam que os amadores trocavam as suas mensagens, até julgavam que estes teriam equipamentos de muito maior categoria da que o governo lhes tinha entregue...dado terem sempre muita dificuldade em fazer as suas comunicações para o Quartel General em Lisboa.

Assim, as mensagens tinham de ser repetidas várias vezes, até que pudessem ser confirmadas.

Foi numa destas situações, em que os Legionários a cerca de 80 Km de Benavente, por terem entregue o emissor a um "expert", ficaram mesmo sem o seu emissor que, de mau, passou a péssimo e até deitou fumo...

Um dos legionários em serviço nessa terra, era um dos condutores de transporte de pessoal da RARET e, sabendo que eu, como técnico na RARET e radioamador CT1DT, tinha facilidade em construir e reparar o meu equipamento, seria a pessoa ideal para reparar o emissor deles e assim um dia, me aparece um Jeep à porta, em que o seu Comandante, pessoa enorme, com mais de 140 Kg. me conta a desgraça do seu rádio-emissor e das dificuldades que isso lhe estava a proporcionar, mas pedindo-me para guardar profundo segredo...

De imediato fui constatar que o referido "expert" tinha achado estranha uma fonte de tensão Negativa no emissor, e logo a alterou para Positiva, sendo que a partir dessa altura, nunca mais o emissor havia funcionado. Como a tensão negativa era absolutamente lá necessária para colocar as válvulas 807 em classe "AB2", na modulação, e as duas do Andar Final em "Classe C", aquela troca foi o fim das caras válvulas...

Assim, e enquanto o Comandante foi de imediato a Lisboa comprar as 4 válvulas necessárias, eu fiquei a investigar o comportamento de todo o emissor e tendo trocado certos condensadores que estavam com fuga e algumas resistências que estavam muito alteradas de valor.

Assim, e usado um osciloscópio na observação do equipamento, mal as válvulas chegaram e ajustadas as tensões negativas para os seus valores correctos, mal se colocaram as 807, o emissor começou logo a funcionar perfeitamente e irradiando 100 W. Trocado o cristal por um para a banda dos radioamadores, que era mesmo ali ao lado, como já foi referido, e feita uma chamada Geral, de imediato vieram confirmações de óptimo sinal e qualidade de áudio, para grande regozijo do Comandante que estava ali presente. Claro que eu estava a usar a minha antena.

Não havia dúvida, tanto de Lisboa, como do Porto e Algarve, os controles era magníficos !

Havia só que ir observar a antena que eles tinham montado e que era um simples pedaço de fio caído pela janela abaixo...

Assim, feitos os simples cálculos para aquela frequência, o Comandante logo mandou a rapaziada que se havia juntado, muito curiosa, para irem comprar o fio necessário, bem como isoladores e cabo coaxial para a baixada, e em pouco mais de meia hora, já lá estava montada a antena no alto de dois edifícios, pronta a ser usada.

Como eu já possui um medidor de SWR para a verificação do estado da antena, de imediato pude verificar que a antena estava óptima e feitos os ajustes com uma chave de fendas, atirei com a potência daquele PA à antena e tudo parecia correcto. Assim, fiquei à espera da hora das comunicações deles com o Quartel General, que era daí a meia hora, pelas 19:30...se bem me lembro.

"E quem é o operador ?" ; perguntei eu.

De imediato me apresentaram um rapaz muito novo, magro e até meio gago, mas quando lhe coloquei o microfone em frente, ele já ia começar aos berros, quando eu lhe disse para falar ao nível normal...o que ele muito estranhou, pois estava habituado a ter de berrar, para chegar a Lisboa. Além disso, eu lhe havia recomendado para só chamar UMA VEZ, se a frequência estivesse livre.

Toda a gente estava atenta aos seus relógios, para aquela "prova de fogo", quando o Comandante informa o operador, para fazer a chamada.

Todo nervoso, o nosso rapazote, enche os pulmões de ar e lá deixou sair a sua chamada:

"CSXPTO (ou coisa parecida) chama o Quartel General CSRPT( ou coisa parecida) e passa à escuta.

De imediato uma voz de trovão enche a sala com Lisboa a dizer: "Forte e claro. Envie o seu serviço."

Uma onda de alegria exagerada, ouviu-se da malta toda presente, que foi logo mandada calar pelo Comandante.

Como o tráfego era confidencial..., logo me despedi e vim-me embora.

Aquela estação ouvia-se tão forte em todo o país, que todos os outros agrupamentos dos legionários, passaram a pedir ajuda e reencaminhamento das suas mensagens para Lisboa. Assim, aquela estação passou a ser considerada o Quartel General fora de Lisboa, e passados uns meses, Lisboa foi lá e caçou-lhes o equipamento, tendo lá deixado um mamarracho muito velho, mas como a antena era óptima, as comunicações continuaram a fazer-se suficientemente bem, até que a evolução politica se alterou e deixaram de existir os Legionários...

Estávamos agora, em 1975.

sábado, 7 de julho de 2007

E CEGOU DE TRISTEZA...

Durante muitos anos, sempre julguei que a expressão "cegar de raiva", seria uma força de expressão, mas depois de ter conhecido os meus familiares mais antigos, vim a saber que não: poderia mesmo, ficar-se cego de tristeza !

Quando se tem a sorte de atingir uma idade avançada, como eu, aos 80 anos, e sem se querer, cada vez mais interesse se tem pelas nossas origens e isso me levou a aprofundar o historial não muito distante, da minha família e ter conhecimento de factos que estavam pouco claros ou até, alguns, desconhecidos para mim.

Isto me levou à INTERNET e lá fui descobrir coisas muito interessantes sobre os meus familiares que se começaram a conhecer na Ilha da Madeira; a família Ferraz.

Obviamente que me iria meter numa grande confusão, porque há Ferraz por todos os lados, e muito em especial no Brasil. Ná, eu teria de saber coisas mais recentes, e não ir parar a 1600 ou 1700...

Assim, e já sabendo que um meu tio, vivido em 1856 e era o dono duma importante fábrica de açúcar naquela ilha, fui encontrá-lo em "Açúcar na Madeira" e ele lá estava, logo à cabeça da página, como Severiano Alberto de Freitas Ferraz, com a sua fábrica em Ponte Nova, no Funchal ! Eu já estava em casa, no seu palácio !

Ele se tinha casado com uma senhora D. Leonor Terêncio Vieira, em 1817, e tiveram 7 filhos. Um deles, era o meu bisavô João Higino Ferraz, que ficaria a ajudá-lo na fábrica do açúcar.

Aqui o meu leitor se estará a sentir um pouco morno de entusiasmo, mas já lá vamos ao que mais importa nesta crónica, a « cegueira dada pela tristeza», mas ainda tenho umas voltas a dar...

Foi por esta altura, 1856, que um inglês, de nome W. Hinton, foi parar à Madeira e para nosso azar, foi meter o nariz na fábrica do açúcar, tendo logo depois, feito uma sociedade com maquinaria toda nova e vai de fazer uma guerra atroz a meu tio, pagando muito mais aos fornecedores da cana do açúcar, do que meu tio poderia. Para meu tio, era uma guerra muito suja, mas que poderia aguentar-se por mais algum tempo, mesmo a perder dinheiro...

Para meu tio, o Hinton tinha de estar a perder dinheiro com o que estava a pagar e isso o levou a um profundo desgosto, em especial porque não via a possibilidade de continuar a viver assim, pelo que se enfiou no escritório dias e dias e acabou por se suicidar com um tiro de pistola.

Entram em cena os credores que levam todos os haveres da família, só deixando a casa e um piano de cauda que ele havia ofertado à minha avó e que veio a ser a salvação da nossa família daquele lado.

Minha avó, Leonor Esther de Carvalho Ferraz, era a mais velha de todos, embora só com 18 anos, tinha um irmão muito meigo e sensível, um artista, e nada atraído pelas mecânicas, e que havia aprendido a tocar violoncelo com um professor irlandês que havia ido para a Madeira, à procura de se salvar duma tuberculose pulmonar, que o havia agarrado, e era este irlandês que também era professor de música da minha avó.

Assim, com tanta falta de dinheiro, e sem a possibilidade de continuar a pagar-lhe as lições de música, minha avó foi confessar-se ao irlandês das suas tremendas dificuldades financeiras, mas o professor, que já gostava muito dela, e dos seus dotes no piano, não só não lhe exigiu mais um tostão, mas também lhe começou a enviar alguns dos seus alunos.

Aquilo ia dando para viver, mas havia que fazer algo pelo irmão José Ferraz, que se andava a mostrar muito entusiasmado pela medicina e pela música, em especial o violoncelo. Só que o dinheiro não dava e lá vai o José para os Pupilos do Exército, cursar a tropa, que tanto abominava... e, às tantas, começou a cegar, perante a grande confusão da medicina de então, que foi consultada. Como já não servia para o exército, foi suspenso e voltou à Madeira, imensamente triste.

Como não se encontrava nada na vista do rapaz, aquilo só poderia ser algum grande desgosto que o rapaz teria e aí minha avó se lembrou de que ele só queria estudar medicina, curso muito caro, mas como o número de alunos havia aumentado, lhe pareceu que poderia tentar ajudá-lo a fazer medicina e assim aconteceu, vendo o José voltar a possuir lentamente, a visão.

Certamente que minha avó seria um pouco mais nova do que nesta imagem, mas desde logo muito nova, passou a ter cabelos brancos prateados que conservou até aos 85 anos. Tenho pena de não possuir uma sua fotografia aos 18 anos, mas dizia-se que era das mulheres mais lindas do Funchal...

O curso de medicina estava a exigir muito do José e, porque não possuía dinheiro para os livros, refugiava-se na biblioteca da universidade e foi aí que foi encontrar também, com sérias dificuldades financeiras um colega que tinha muita habilidade para o desenho e desde aí, os dois rapazes viriam a brilhar nos seus cursos, ajudando-se um ao outro.

Esse outro jovem madeirense, tinha uma vasta família de 12 irmãos e também a paixão pela medicina, música, desenho, mecânica, caça, etc.

Ele se chamava Carlos Abel Bettencourt Leça e havia nascido em 1870, numa pobre freguesia de pescadores, de nome Madalena do Mar, no Sul da ilha da Madeira. Este rapazão, viria a ser mais tarde, em 1927, meu avô.

Esta amizade perdurou por todos os anos das suas vidas e foi nos contactos em casa do José Ferraz, que ele veio a conhecer e admirar os dotes e coragem daquela senhora D.Leonor Esther Ferraz, mais velha do que ele 8 anos.

Mas para cúmulo do azar, o seu primeiro amor, já com a data marcada para o casamento, arranja uma tuberculose fulminante e vem a falecer poucos dias antes da data marcada para o seu casamento.

D. Leonor fica completamente destroçada e incapaz de se aventurar a novo noivado, embora sentindo que aquele jovem da Madalena do Mar, a tenta cortejar a todo o custo !

Mas a pouco e pouco se sentiu atraída pelo jovem Carlos Leça, com quem viria a casar uns tempos depois, em 1894. Foi esta distinta senhora, minha avó, mulher "de armas" que se valeu de todos os seus conhecimentos, para aguentar a família, não só ensinando inglês, português e francês, além da música, que era a sua paixão.

Na ilha da Madeira, havia muitas famílias estrangeiras que procuravam o seu dócil clima e muitas jovens procuraram na sua permanência na ilha, o meio de se instruírem.

Acabados os cursos de medicina, com os mais altos valores, o Dr. José Alberto Ferraz veio para o Continente fazer clínica, como médico Municipal em Belas, e depois em Queluz e, como era um artista em medicina e música, quando faleceu, com 31 anos, em 1921, as Juntas de Freguesia de Belas e de Queluz, deram o seu nome a várias ruas, que ainda lá estão:

Dr. José Alberto Accioli Ferraz

MÉDICO

Este médico começou a ser muito admirado como violoncelista e às tantas, foi convidado por sua Exª. o Rei D. Carlos, para fazer parte do seu conjunto de música de câmara no palácio. Quando entrei pela Internet, há pouco tempo, no interior do palácio do Rei D. Carlos, hoje Museu da Ajuda, e vi a sala de música, logo me lembrei do meu tio lá assentado a embelezar os serões de Sua Majestade.

O Dr. Carlos Leça, ficou pela Madeira, vivendo em casa da esposa, mas como ainda não era conhecido, a profissão da medicina não dava para nada e ele se sentia muito frustrado por estar a viver à custa da esposa.

Assim, um dia apareceu vaga de médico num navio de carga, a que ele concorreu e logo seguiu viagem para as Bermudas, aquele malfadado triângulo das Bermudas, tendo o navio se afundado com toda a sua tripulação...

Mas valeu ao Dr.Carlos Leça, que havia sido acometido de uma apendicite aguda e ainda estava no hospital, em terra, quando o navio se afundou.

A terrível notícia logo correu mundo e a D. Leonor Ferraz, acabadinha de casar, já se sentia viúva, quando uns meses depois, vê aparecer o seu marido são e salvo das Bermudas... viajando noutro navio.

Mas infelizmente, a vida de médico novo, continuava difícil e vai de responder a um anúncio para médico em S.Miguel, Açores, para a Maia, freguesia no norte da Ilha e lá vai ele com a sua esposa para S.Miguel, cheia de tristeza por ter deixado o seu piano de cauda, na Madeira...

D. Leonor estava agora grávida do seu primeiro filho e cada dia mais triste de não se poder deliciar ao teclado do seu magnífico piano. O seu estado de tristeza profunda, em nada estava a ajudar aquele parto...

Acompanhada de sua mãe, D. Sofia Amália de Carvalho Ferraz, esta de companhia com o seu genro, e em completo segredo, decidem mandar vir o piano da Madeira e finalmente, uns meses depois, ele chega, para grande alegria de D.Leonor e Dr.Carlos Leça.

Mas na Maia, volta a acontecer a mesma dificuldade de exercer a medicina, até porque era um povo muito pobre e é durante umas das suas visitas médicas a um doente, às tantas da madrugada, que nasce o seu primeiro filho, sem a sua presença, entregue à sogra e uns serviçais. Mas felizmente que o marido, ao chegar a casa, vai encontrar tudo em silêncio e a sua esposa a dormitar, bem como o filho, a quem foi dado o nome de Francisco Assis Ferraz Bettencourt Leça.

Muitos factos desta história, foram respigados dum belo escrito intitulado "A família Ferraz", duma minha irmã, a Leonor Ferraz Bettencourt Leça Faria, hoje com 78 anos, nascida em 1928, a quem presto a minha homenagem e Maria Antónia Accioli Ferraz.

( Maria Leonor Ferraz B.Leça Faria )

Daquela Leonor Esther Ferraz, houve um irmão de nome João Higino Ferraz Jr., que dado o seu entusiasmo pela rádio, viria a ser um grande telegrafista como radioamador, com indicativo CT3AB e ultimamente o mesmo indicativo foi herdado pelo seu filho Henrique Eduardo Clode Ferraz, falecido há poucos meses.

Na foto, João Hygino Ferraz em visita ao Dr.Calos Leça, há 78 Anos, em S. Miguel.

A partir desta crónica repleta de tantas tristezas e alegrias, já o leitor pode saber a sua continuação, na crónica que se segue, "A casa cor-de-rosa", e ficou a saber que uma grande tristeza, também pode dar como resultado uma grande cegueira.