quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

A MOTO SÓ ANDAVA A DIREITO...

A minha necessidade de experimentar coisas, já vem desde criança e, agora, com quase 80 anos, ainda não se apagou...Tudo quanto é novidade, me apaixona !

Mas quando eu tive o azar de ir parar com as costelas a um sanatório do Caramulo, além de poucas roupas, fazia-me acompanhar dum máquina fotográfica, por mim construída uns anos antes, e que serviu de muito gozo ao meu companheiro de quarto que, não conseguiu reprimir aquela observação de que eu julgava ir fazer umas férias na montanha...

Na verdade, eu nem pensava que me iria preparar para a entrada no cemitério e só levava na ideia de que aquilo iria ser mais uma "aventura" das muitas por que já havia passado...

Infelizmente aquilo começou a ficar "preto" para mim e passados uns meses, eu até já nem me conseguia aguentar de pé, tal era o meu estado de fraqueza... e desmaiava, para acordar uns minutos depois, ficando muito admirado de me ver estatelado no chão...com cara de parvo...

Assim, resolvi que teria de mudar daquele estilo de vida deitado dia e noite, sem conseguir alimentar-me convenientemente, porque chegava ao jantar, ainda com o almoço em digestão... e dar umas fugidas ao campo, mesmo a horas proibidas... mas foi o que me safou ! O ar do fresco campo e o andar, rapidamente me ajudaram a ganhar mais força, e passado um ano, até os médicos estavam admirados com o que se estava a passar com a minha saúde, porque de caso perdido, segundo me disseram nessa altura, já estava a melhorar e, como as análises de positivas se haviam tornado negativas...eu estaria em vias de cura...

Passados uns dois anos de lá estar, o meu médico assistente, vendo que eu estava a arrebitar, e à procura de distracções, disse-me que tinha o seu velho carro parado e sem ninguém que descobrisse o seu defeito, pelo que logo aí me senti convidado a ir dar uma vista de olhos.

O raio do carro estava numa minúscula garagem inclinada para dentro e nem havia espaço para dar à manivela...mas como o terreno era inclinado, eu não tinha força para o empurrar para fora e foi mesmo ali que desmontei o carburador para limpar, verifiquei as velas, puli os platinados, assoprei no depósito da gasolina, para fazer chegá-la ao carburador e vai de dar à manivela, porque a bateria já estava muito fraca. Felizmente que o motor pegou e ali estive eu às apalpadelas, a tentar descobrir onde ficava a marcha-atrás, pois todas iam para a frente... Aquilo estava chato para burro, mas eu tinha de ir dar uma volta com o carro, custasse o que custasse, mesmo muitos anos antes de ter carta de condução...

A minha curtíssima curiosidade de conduzir, só a tinha usado ainda nos tempos da escola primária, como já narrei noutro episódio a que intitulei "Sozinho ao volante".

E finalmente lá encontrei a malvada mudança, depois de quase ter arrancado a alavanca das mudanças, com tantas tropelias... e vai de tirar a velha carripana cá para fora e ir dar uma volta, levando-o até ao consultório onde o meu médico Dr. Trajano Pinheiro (já falecido) muito admirou a minha façanha ... e me agradeceu ! Esse pequeno e antigo carro, foi posteriormente entregue ao Museu dos Automóveis do Caramulo.

-Um certo dia, aconteceu que o padre da freguesia, talvez por ter sabido da minha habilidade para arranjar o carro do Dr. Trajano, me veio pedir se lhe conseguia ver o porquê da sua velha moto ARIEL 350 não funcionar e ali estava mais uma aventura agradável para meu gosto e vai de arranjar ferramentas para fazer os mesmos trabalhos que tinha efectuado no velho automóvel. Assim, a primeira coisa que fiz foi tirar a vela, ligar-lhe a bateria e dar uma pedalada, para ver se tinha faísca, e até tinha. Então, pensei eu, isto deve ser sujidade no carburador e vai de borrar-me todos para o retirar e limpar devidamente.

Depois voltei a abrir a torneira do combustível e vai de ligar e dar uma pedalada, mas a "mula" é que não gostou nada daquilo e pregou-me um tal coice, que me ia partindo a perna...além de me atirar ao ar, para fora do seu "lombo", mas voltei a repetir a manobra e consegui pô-la a funcionar !!! Malvada "mula"...

Mas aquilo era outra coisa, pesadíssima para as minhas poucas forças, mas eu tinha de a ir experimentar...

Eu já andava perfeitamente de bicicleta desde a minha infância e pensei que aquilo devia ser "canja" !

Depois de andar às apalpadelas com as mudanças, ora pedal para cima ora para baixo, finalmente lá consegui uma mudança em que aquela besta pesadíssima, andasse em frente, e lá me meti pela avenida principal da Estância Sanatorial acima, gozando à parva com o vento na cara, a ouvir o belo roncar do motor, mas vendo que o raio da moto não gostava nada de fazer as curvas... Aquilo era mesmo estranho, mas como eu pesava uns 40 Kg, por mais que a tombasse e tentasse voltar o guiador, aquela treta só queria ir em frente...

Malvada da moto, pensava eu, mas devido à minha ignorância em retirar acelerador e deitá-la, continuava a acelerar, pensando que fosse mais fácil obrigá-la a fazer as curvas, mas triste pensamento...ela ia mesmo e só a direito... Já era mania dela, pensava eu...

A avenida tinha e ainda tem, uns murinhos dos lados, com uns 10 centímetros de altura, e ao chegar lá acima, tinha mesmo que fazer a curva para a direita, mas ela é que não ia nisso e felizmente que não havia qualquer trânsito à vista, porque cruzei a avenida para o lado oposto e fui até tocar com a roda da frente do murete ! Claro que a moto raspou no murete a roda da frente, e parou de repente e lá vou eu catapultado para fora da moto e da avenida, ficando ela a trabalhar, deitada no chão, provavelmente muito admirada pelo que tinha acontecido... e eu todo roto e cheio de terra, fazia tudo por me conseguir levantar...depois de ter dado uma data de cambalhotas...

Mas um pouco amolgado, lá me pus de pé e fui até ela, desengatei-a e tentei pô-la de pé, mas aquilo pesava toneladas...era demais para mim ! Mesmo assim, enchendo bem o peito de ar, lá a coloquei em pé, mas mal passei pela vertical, ela me levou para o lado oposto, ficando ela e eu, estatelados no chão...mas agora no sentido contrário...

O meu coração batia que nem um desalmado, não só pelo cansaço, mas também de desespero por não conseguir por em pé aquela bruta coisa...mas finalmente lá o consegui e, engatando uma mudança que nem cheguei a saber se era a primeira ou a segunda, ou até a terceira... (marcha atrás é que não era...) lá a arranquei e aos zig-zags, lá continuei a minha odisseia, tentando perceber porque é que aquela máquina só gostava de andar a direito...

Eu estava todo arranhado e a mota também, mas lá a consegui entregar ao padre que, um tanto amargurado e surpreso, vê a sua bela mas velha ARIEL, a funcionar e, com um sorriso muito amarelo, me agradeceu...

Uns anos mais tarde, por motivos de necessidade de transporte para emprego, adquiri um motoreta nova e muito linda, de 50CC, que ainda me lembro chamar-se Pelegrino, e foi com ela que fiz muitos quilómetros e alguns acidentes estúpidos... devido às muitas tentativas de novas experiências...

O mais engraçado é que passados tantos anos, ainda tenho medo das grandes motos, sempre pensando que o meu peso actual de somente 60 Kg, pode voltar a não ser o suficiente para a manter em pé, mas quando as olho, coisas lindíssimas e caras, não sinto coragem de as montar, sempre a pensar no que me aconteceu há mais de 50 anos atrás....embora cheio de vontade...

domingo, 14 de janeiro de 2007

CÁ ESTAMOS.......... por Prof. João Martinho


Do nosso colaborador João Vitalino Martinho, segue-se mais um dos seus interessantes artigos, desta vez destinado à cidade de SANTARÉM, onde reside há mais de 50 anos, artigo este escrito propositadamente para orientar os visitantes a esta mui nobre e antiga cidade.

O Editor

Mário Portugal

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Cá estamos…..

No planalto estrelado de sete pontas… na cidade das 8 portas…na capital do gótico….na Xantarim dos mouros….na Praesidium Julium dos romanos…. Na cantada Escalabicastro de Camões…na do Santíssimo Milagre….na de Santa Iria…na terra de Pedro Escuro…na tumular de Pedro Álvares Cabral…na cobiçada de sarracenos e cristãos…na velha e altaneira acrópole que domina o ubérrimo e milenário Vale do Tejo.

Deambulemos pelo Passeio da Rainha inaugurado em 15 de Setembro de 1878, agora Jardim da República por imperativo de mutações políticas, ali junto à que, em tempos, se chamou Porta de Leiria e situemo-nos junto à estátua de D.Fernando para vermos a fachada da Escola Prática de Cavalaria donde partiram os militares do 25 de Abril.

Fixemo-nos agora na Câmara Municipal instalada no palácio do Provedor das Lezírias, residência disputada nas lutas fratricidas de D. Pedro e D. Miguel. Visitemos o mercado com os seus belos painéis de azulejos retratando os mais puros motivos regionais e vamos ao Convento de S.Francisco, começado a edificar no princípio do século XIII, a que Garrett chamou a “bela ruína” e onde, reza a tradição, esteve guardado um espinho da coroa de Cristo e um pedaço da pele de S.Jorge.

Passemos ao Terreiro do Paço agora chamado Praça Sá da Bandeira com estátua erguida a um dos mais notáveis santarenos que foi ferido quatro vezes em combate e perdeu um braço em defesa da Pátria. No epitáfio que deixou escrito para a posteridade e que se pode ver no Cemitério dos Capuchos, declarou por expressa vontade:

“ Morro contente . A Pátria nada me deve “.

Admiremos a majestosa fachada da igreja do Seminário Patriarcal, belo exemplar do estilo filipino com Santo

Inácio de Loiola, S. Francisco Xavier, S. Francisco de Borja e S. Etanislau a vigiar os alpendres por onde entraram gerações de estudantes, quer no liceu quer no seminário . A janela manuelina que aparece, envergonhada, na frontaria duma casa do terreiro, diz a tradição, serviu de moldura à figura desvairada de D.Pedro que dali comandou a execução dos assassinos de Inês de Castro.

Caminhando pela rua Serpa Pinto e Capelo Ivens passamos no largo Padre Chiquito onde os operários da cidade deixavam braçados de flores, no 1º de Maio, exprimindo saudade e reconhecimento ao grande humanista. Agora, por terrenos da judiaria e da mouraria, damos connosco na Praça Visconde Serra do Pilar onde , antigamente, se faziam justas, torneios e até corridas de toiros.


Salta à vista a igreja de Marvila com um portal de bela arquitectura manuelina e cuja fundação remonta aos primórdios da nacionalidade. Surge agora no nosso percurso a Igreja da Graça que pertenceu ao Mosteiro dos Ermitas Calçados de Santo Agostinho e que é a mais delicada jóia da arquitectura gótica de Santarém em cujo interior repousam as cinzas do grande descobridor do Brasil. Em campa rasa pode ler-se “ aqui jaz Pedralvarez Cabral e dona Isabel de Castro sua molher”…..

A caminho da alcáçova que foi real colegiada de D.Afonso Henriques depara-se-nos o Cabaceiro, velha torre construída no tempo de D.Manuel I, para relógio e sino de correr. Em paralelo, o edifício de S.João do Alporão de feição românica, a servir de museu arqueológico, onde se guardam peças únicas de grande valor colhidas na região.

Mais uns minutos e encontramo-nos a percorrer a Avenida 5 de Outubro, um túnel florido, na primavera, com o róseo das olaias.. Estamos no coração da alcáçova com o espírito a viajar no tempo até à data de 15 de Março de 1147, relembrando mais uma vez a arrancada de D. Afonso Henriques e dos seus homens naquela madrugada.

Entremos no jardim onde se localizam as portas do sol e, chegados à muralha, se o tempo ajudar, estaremos perante um dos mais belos quadros que a natureza oferece aos olhos sequiosos de vastidão e beleza.

O Tejo, e a lezíria a perder de vista, despertam emoções novas a mexer com o mais recôndito da sensibilidade, abrindo novos capítulos de espanto e admiração…..

Destes baluartes e torres teria o alcaide mouro Abzechri observados cheias que transformam a campina num mar imenso como a de 1979 em que as águas atingiram a altura de 8,89 metros e o caudal subiu a 14 milhões de litros por segundo.

Daqui se avista toda a beleza da natureza ribatejana…

Cá estamos…...

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

E A CHAVE ATÉ ABRIU A PORTA...


Quando eu tinha 12 anos, estava na Escola Industrial em Ponta Delgada, Ilha de S.Miguel e a minha maior paixão, já vinha de anos antes, com o cinema.

Eu já havia feito várias Lanternas Mágicas, usando umas lentes duns velhos óculos da minha avó, e havia desenhado em tiras de papel Celofane, a tinta da China, uma data de bonecada, que depois ia mostrar todo contente, às minhas irmãs, projectando as imagens num lençol à laia de ecrã. Perante a alegria que isso lhes dava, e as risotas despoletadas, muitas vezes a família graúda vinha ver o que se estava a passar naquele quarto às escuras e mesmo sem qualquer comentário, eu achava que até as pessoas mais velhas, estariam a apreciar os meus brinquedos, mas nunca ouvi um piropo... ou se o faziam, era em voz tão baixa que eu nem os ouvia...

Naquela época, não havia corrente eléctrica lá em casa, e até aos meus 15 anos, idade em que me vim embora dos Açores para o continente, e havia que tomar mão de velas, pelo que a visão dos meus desenhos, deixavam muito a desejar, mas viam-se, que era o mais importante...se a sala estava bastante escura.

Obviamente, não havia movimento dos desenhos e eram imagens paradas, mas eu sonhava um dia poder vir a conseguir movimentar aquelas imagens...Isso é que seria mesmo bom ! Mas para tal, eu tinha a necessidade de construir uma máquina para mim, exageradamente sofisticada.

Meu avô, que sempre havia gostado muito da fotografia e até tinha uma belissima máquina profissional de fotografia, que fazia fotografias em chapa de vidro, até 9X12 Cm. não era insensivel a este meu gosto pelo cinema e um dia chamou-me para me mostrar dum seu livro, escrito em francês, que, se bem me lembro, se chamava "Les Secrets de l'économie Domestique", de 1890, como aquilo era feito e foi desse livro que vim a saber que teria de haver um mecanismo com carretos para puxar o filme de cinema e teria de haver uma Cruz de Malta, que faria as imagens saltarem de umas para as outras, muito rapidamente, coisa que me parecia muito complicada de fazer... Meu avô até me explicou que a visão do movimento das imagens, se devia à persistência das imagens no nosso cérebro. Aquilo até me parecia "magia"...

Mesmo perante esta enorme dificuldade, lá me abalancei a expor o meu problema ao meu Mestre da Oficina, que, pelos vistos até achou graça no meu entusiasmo e me alvitrou como eu a poderia construir, além da construção dos carretos que também eram necessários. Mas para tal, eu teria de usar o torno, ferramenta que só os alunos dos anos posteriores, 4º e 5º, poderiam usar...enquanto eu ainda estava no primeiro...

Felizmente que havia nascido com um pequeno torno mecânico em casa, em que já havia conseguido tornear várias coisas, em madeira, latão e marfim de dentes de baleia, embora com grande sacrifício, porque ele era de pedal e exigia uma força que estava nos meus limites...

Ainda me lembro de ter agarrado um valente dente de baleia (mais propriamente cachalote), e ter aproveitado o lado da sua raiz, onde há um grande buraco, para abrir à goiva, um orifício maior e dar-lhe a forma dum cálice. Assim, depois do meticuloso interior, e com muito cuidado, fui torneando o exterior e depois o pé. Aquilo estava mesmo bonito de ver, porque eu tinha conseguido fazer uma parede muito fina no lado de cima do cálice, que ficava quase transparente.
Quando o fui mostrar à minha mãe, logo ela me disse que iria oferecê-lo à minha madrinha e assim foi.

Durante alguns anos, sempre que ia à casa dela, via a "minha taça", em lugar de destaque sobre uma mezinha onde ela guardava várias fotografias de família.

Como o torno já não me metia medo, foi, com grande alegria que informei o meu Mestre, de que me parecia ser capaz de tornear as peças necessárias e ele não só acreditou em mim, como me deixou ir para o enorme torno da escola, perante o olhar desconfiado e talvez de inveja, de todos os meus colegas de turma.

Aquilo até meteu forja, para fazer uma espécie de prego (veio de 6mm de diâmetro) com uma grande cabeça de 5 Cm de diâmetro, onde foi facetada, marcada, cortada e limada a tal Cruz de Malta, com a maior precisão que me foi possível.

Depois dum bloco de aço de 5 centímetros de diâmetro, foi feita a peça que iria fazer andar a Cruz de Malta e depois de mais umas aulas, ali estava a maquineta a andar e a fazer o barulho característico dos saltos das cruzes de Malta. Depois foi tornar em aço, os dois carretos de entrada e saída do filme à Cruz de Malta, trabalho bastante aborrecido, porque nessa altura, eu ainda não sabia abrir à fresa, rodas dentadas. Assim, enrolando um pedacinho de filme de cinema em forma de cilindro, marquei os sítios onde teriam de aparecer os dentes e aquilo também foi conseguido com sucesso.

O Chefe da Oficina, de vez enquando, passava perto de mim, mas depois de olhar bem, não dizia nada e lá se ia embora. Nesses momentos toda a turma parava de trabalhar, para apreciar a cara do nosso Mestre...

Passado alguns meses, eu já conseguia projectar pequenos pedaços de filme de cinema, embora com uma barulheira terrível da "malvada" Cruz de Malta, porque eu não tinha ainda caixa de lubrificação e vedação de som.

Certo dia, ao entrar no gabinete do meu Chefe, vi pendurado, um molho de chaves Yale, virgens, e uma já feita. Aí perguntei-lhe, muito envergonhado, se me deixava fazer uma chave igual, ao que ele me perguntou: -E que ferramentas necessitas ?

Logo lhe respondi que me bastaria um conjunto de limas de ourives, coisa que eu já tinha visto em minha casa, e ele, abrindo a gaveta da sua mesa, entregou-me o jogo de limas. Aí vou eu para uma bancada, com uma craveira e vai de copiar a chave, com a máxima precisão que pude. Aquilo até parecia que estaria bem e assim fui mostrá-la ao meu Chefe que olhou, olhou, viu por todos os ângulos, com as duas uma sobre a outra, e acabou por me dizer que a fosse experimentar na porta do Director da Escola. E assim vou eu à procura da porta e não é que a chave abriu de imediato a porta ? Mas, para meu espanto, estava lá dentro o Director que me chamou de imediato, muito rispidamente, com um grande berro, e me pergunta onde fui arranjar aquela chave...

Só me faltou chorar de vergonha, mas lá lhe expliquei que a havia estado a fazer e que o meu chefe me tinha dito para a ir experimentar, provavelmente não sabendo que o Sr. Director estivesse lá...

Lá me mandou embora, mas dizendo-me para chamar, o meu Chefe, o que aconteceu de imediato.

Não sei, ainda hoje, o que se teria passado, mas certamente que o meu chefe deveria ter apanhado um bom raspanete do "malvado" Sr. Director, ao ver um miúdo abrir-lhe a porta do gabinete e sem sequer bater primeiro...e ele que estava em conferência com outros professores, todos de boa aberta a olharem para mim...Mas que grande bronca !!!!

Veludo e Pó Caiado..... pelo Prof. João Martinho

João Vitalino Martinho, não descreve somente episódios da sua terra ribatejana ESPINHEIRO, e o leitor irá ficar um tanto surpreendido por o poder ler falando sobre a NAZARÉ, terra de que ele gosta intensamente e desde há imensos anos, passando lá muitos dos seus períodos de férias. Da mesma forma, ele fala das gentes desta terra e com o mesmo sabor, o mesmo detalhe, observação e saborosa linguística.

O Editor Mário Portugal

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Nazaré, terra de sonho !

Veludo e Pó Caiado

Imobilizado num leito do hospital do Sítio, Pó Caiado ruminava a sua vingança.. O cérebro febril não parava. Havia de matá-lo ali mesmo na praia à vista de toda a gente quando a barca do ti Olhinha viesse da pesca e a palecada (banhistas) estivesse em força no areal. Primeiro agarrava-o pelos cabelos e depois batia-lhe com a cabeça ,cem vezes, na roda de proa duma lancha qualquer, mas antes havia de ter uma conversa :

-Olha lá Velude se és home, bota a navalha no chão e vira-te cá pra mim…!O outro, já se vê, havia de vir para ele mas sempre com a mão no bolso a apalpar a mola para lhe dar outra naifada. Pó Caiado, durante as três semanas de internamento cogitou e calculou todas as situações. A Nazaré havia de fazer daquele encontro o caso do dia. Nas tabernas, na lota, nas vielas, nos cafés e na praça, o caso Pó Caiado e Veludo, ia ser falado…..Ah isso é que ia….!

E á medida que o tempo passava e a comichão das cicatrizes se acentuava dando mostras duma cura total, o plano lá ia amadurecendo e sofrendo as alterações que o seu estado humoral comandava. De modo que, quando o médico, numa das suas visitas diárias lhe deu alta e o aconselhou a ter juízo e a não se meter em brigas por causa de mulheres, já o Pó Caiado tinha comutado a pena de morte ao seu adversário para se ficar numas lambadas bem assentes e uns socos nos olhos, com umas nódoas negras que haviam de servir gozo ao mulherio. - Olha cá Velude….tás de lute….quem é que te merreu ? Foi a tua menher..? Pó Caiado, conformado com estas antevisões, lá desceu no elevador pela calada da noite escolhendo um percurso furtivo que o levou a casa sem ser notado pelos poucos transeuntes que encontrou.- Olha lá filhe, queres que coza umas cavalinhas com batatas….?- Quero sim nha mãe…..- Olha filhe gostava que saísses esta noite…tou sempre sozinha…. Faz-me a vontade…preciso tanto de companhia….- bem nha mãe… E lá passaram o serão trocando banalidade, até que o sono os venceu. Mal rompeu a manhã, Pó Caiado foi espreitar o mar….- Que é iste…? O mar tá grosso ..! (e pensando no outro)…Se calhar o malandro pira-se pra S. Martinho e lhe ponho a vista em cima….! Contudo ficou-se pela praia aguardando os acontecimentos. Não tardou que a barca do Ti Olhinha, lembrando um enorme cetáceo, encalhasse no meio de grande rabiosa e com a companha encharcada até aos ossos. Vieram depois o Antoino Vapor e o Álvaro que à cautela deixou o ferro para lá da rebentação, não fosse o diabo tecê-las. Com o mar assim e sem rasos, todo o cuidado era pouco. E não havendo mais embarcações no horizonte voltou a casa para ir tratar dos apréstimos guardados na cabana…mas sempre a remoer…a pensar no outro. Tão absorto e alheado ia, que não deu pela corrida desusada do mulherio que,..finalmente , o reconduziu à realidade. - Acudam….! Acudam…..! Ai o mê rico home que vai merrer…! Pó Caiado apercebeu-se que algo de anormal tinha acontecido e lesto voltou à praia…Sim…muita gente...tinha havido um desastre….Um batel flagelado pelas vagas e tinha-se voltado. Numa confusão enorme de remos, cabazes e redes que bailavam na crista das ondas….no meio duma algazarra enorme e gritos de apelo à Senhora da Nazaré, os de terra iam recolhendo os náufragos. Entretanto um velho de barbas com as roupas coladas à magreza do corpo gritava: - Falta um.. ! Falta um…! É aquele…! É o Velude…! E apontava para o mar onde se via uma cabeça que se afastava levada pela maré. Foi então que o Pó Caiado, mesmo vestido, embalou no declive da duna, se atirou com arrojo e decisão às águas revoltas e ameaçadoras. Com braçada forte e ritmada aproximou-se e agarrando o Velude, pelos cabelos, iniciou a difícil e perigosa retirada, contrariado pela corrente, pelo frio e pela ressaca. Na praia reinava o silêncio. Cada rosto denotava angústia e nos lábios adivinhava-se uma prece: - Deus queira que se salvem…! Deus queira …..E numa lentidão enervante em que a progressão se fazia em avanços alternados com horríveis arrecuas..as duas cabeças ora subiam ora desapareciam…Os de terra apercebendo-se do momento mais crítico gritavam: -.Força….! Força…..! Agora….! Agora….! E de repente uma vaga enorme trouxe-os à borda e deixou-os em seco, exaustos, esfarrapados e semiconscientes. A chusma dos palecos e mirones rodeou-os e prestou-lhes os primeiros socorros. Quando conseguiram pôr-se de pé abraçaram-se e, convulsivamente, choraram lágrimas de arrependimento e perdão, mas o Pó Caiado, num último assomo de energia, finalizou com a simulação duma bofetada no Veludo, numa espécie de certificado de homem de palavra:

- ê nã te disse que as havias de levar ...?

A Nazaré acabara de escrever mais uma página na sua longa história de naufrágios em que nunca faltou coragem e abnegação... como as demonstradas pelo patrão Sousa Lobo que numa noite tempestuosa se levantou da cama, atacado de pneumonia, para dirigir um salvavidas, a remos, que foi acudir a um pobre de Cristo que andava perdido na escuridão e na braveza do mar e a quem a Senhora da Nazaré deu força anímica até chegarem as mãos benditas dos salvadores.....

domingo, 7 de janeiro de 2007

ZÉ PAIÃO Por Prof. João Martinho

Pelas mãos do meu muito estimado amigo e prof. João Martinho, tenho a honra de publicar mais um dos seus curiosos escritos, dedicado à gentes da terra ribatejana, ESPINHEIRO, e intitulado Zé Paião.

Segundo ele, estes seus escritos irão fazer parte dum livro que, daqui a algum tempo, será publicado e intitulado "TIOS E TIAS DO ESPINHEIRO" e que, segundo já lhe constou, está já a ser esperado com muito interesse pelas gentes gradas do ESPINHEIRO, por alguém lá da terra, ter descoberto este BLOG, e se apaixonado pelos seus escritos.

O Editor

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( João Vitalino Ribeiro Martinho )

José Francisco Simões

1921-2001

Naquele tempo, durante as cálidas tardes de Verão, após o jantar (meio dia) e a sesta, havia uma espécie de êxodo da população do Espinheiro para a Ribeira, topónimo designativo dum vale verdejante provavelmente cavado pela acção erosiva duma ribeira que nasce para as bandas do Canal e que engrossando um pouco, vai confluir em Pernes com o Alviela onde é promovida a rio Centeio.


Este vale estende-se desde a zona suburbana do Espinheiro onde toma o nome de Almoinhas, até ao Açude situado já no limite da freguesia com a do Arneiro das Milhariças. A par do certificado árabe dos termos almunia e açude que atestam ter sido a população do Espinheiro uma espécie de veículo passivo de transmissão de culturas nas quais, obviamente se inclui , com prioridade, a latina , afirmada através duma zona contígua a este vale a que os antigos chamavam Omnia, termo que significa tudo…que produz tudo tal como afirmava Virgílio nas Geórgicas “ labor omnia vincit “ ( o trabalho vence tudo).


Era nesta espécie de terra prometida que se cultivavam as hortícolas e os frutos que garantiam uma alimentação simples mas de valor certificado pela ausência de pesticidas e se recolhiam os pastos que originavam por via indirecta o melhor leite e os mais saborosos queijos. Daí que, todos os dias uma torrente humana abalava para a Ribeira atrás das carroças e burricos que transportavam as alfaias e outros apetrechos necessários ao amanho e rega das hortas. Inundado de sol e de alegria , o vale adquiria a dimensão dum quadro idílico com todo o bucolismo a renascer dos risos e cantigas, do chap…chap…da água a bater nas rodas das azenhas…dos toques dos pífaros de cana dos pastores para os lados do vale Grou…dos gritos dos rapazes que se banhavam nus na represa do ti Rodrigues….

Fora deste quadro estava o ti Joaquim Piço que, semi deitado na soleira da porta da sua casa, com frente para a loja do menino Quim e para a latoaria do ti Joaquim Pequeno, dormitava e contava o tempo pela sombra dum beirado que se projectava numa parede lateral. Com as ruas desertas e silenciosas, ti Joaquim servia-se deste relógio de sol rudimentar para exercer uma função importantíssima para a época ---O toque das Avé Marias.


Logo que uma cruz previamente feita na parede com um carvão ficava submersa pela sombra do beirado, Ti Joaquim Piço subia ao campanário da igreja e tocava as Avé Marias.. Compassadamente e em séries de 3 toques saíam 9 badaladas que se perdiam nas quebradas longínquas anunciando os deveres cristãos do culto mariano e sinalizando a hora do regresso a quantos mourejavam na terra. Esta prática instituída pelo papa Sisto IV subsistiu até à década de 40 sem que Ti Joaquim e os conterrâneos se preocupassem com o significado da recitação do Angelus tal como faziam os papas na praça de S. Pedro perante a multidão.


Para a generalidade espinheirense as Avé Marias não passavam dum sinal horário de regresso. Era a volta com as couves tronchudas, os nabos viçosos, as melancias…os feijões…as peras e as maçãs etc. etc.


Zé Paião tinha por nome de baptismo, José Francisco Simões.



Por ser carpinteiro de profissão ficava na aldeia mas, logo que ouvia os toques, pousava a serra e a garlopa e encaminhava-se para a fonte do Rio de Baixo . Sentado no bordo do tanque que servia de bebedouro, cruzava os braços sobre o peito esperando a nostalgia do crepúsculo e o regresso da Ribeira anunciado por guizeiras e chocalhos. Em breve o rechiu (rossio) fronteiro, pequeno largo relvado, era invadido pelas crianças ora dando saltos e cabriolas ,ora rebolando ou montando nos animais que estavam à sua guarda no meio de grandes risadas….!



Zé Paião, embevecido, sentia com mais intensidade as raízes que o ligavam ao Espinheiro e se algum amigo se sentava ao seu lado, invariavelmente orientava a conversa na busca duma identificação com base no colectivo , passando em revista factos que presenciou ou outros de que tomou conhecimento através da tradição oral. E porque tinha uma alma grande e generosa, em atitude contemplativa folheava as suas memórias:


-Quando era membro da Junta fiz uma prospecção arqueológica ao Outeirinho Santo. Dizia-se que tinha lá existido uma ermida a S.Bernardo, habitada por um ermitão que gostava de quebrar o seu isolamento convivendo com os pastores que para ali iam apascentar os seus gados….Apenas lá encontrei pedaços de telha (tégula romana) . Seria ali a ermida evocada em 1726 pelo notável pernense Simão Frois de Lemos.. ?


Depois contava a lenda dos mouros que habitavam o vale da Serpe e que vinham buscar leite ao Espinheiro levando no regresso umas brasas que se transformavam
em ouro. Não se esquecia de sublinhar que aquele buraco escavado na rocha a que o povo chamava janela dos mouros não passa dum simples fenómeno de erosão.


Se o interlocutor lhe alimentava o entusiasmo o Zé falava do tal livro:


- Eu vi-o. Lembro-me que estava escrito com letra parecida com a da cartilha de João de Deus. Já estava muito roto. Contava coisas do Espinheiro mas não me lembro de quem era. Eu era muito cachopo….devia ter uns 10 anos…


Mudando do real para o virtual referia:


- A seguir à Várzea está um monte , do lado esquerdo, que tem um tesouro que dá para carregar uma mula…diziam os antigos….!


E se alguém zombava, o Zé mudava para o campo do real:


- A família Costa Ribeiro tinha duas azenhas na Ribeira que foram arrasadas . A vala que as alimentava tinha início no local onde está instalado hoje o campo de jogos do parque do Rio dos Cantos. A da ribeira de baixo esteve inserida num pequeno agregado populacional com 8 moradores. Ficou ligada a um episódio das invasões francesas. Foi o caso que uma criança que nela se encontrava, ao pressentir a chegada de gente a cavalo se refugiou no inferno ( local abaixo do soalho onde funcionam os mecanismos de transmissão).


Corre na tradição da família Costa Ribeiro que os franceses se abasteceram de farinha e foram distribui-la pela população do Espinheiro. Corre ainda que nas lavras e surribas próximas foram encontrados vários esqueletos que não foram identificados mas que provavelmente seriam anteriores ao século XVII, época em que foram edificadas as referidas azenhas.


Zé Paião, de trato simples e afável gostava de dialogar e de colher opiniões. Com modéstia exprimia o seu ponto de vista e informava :


-Naquele tempo a Ribeira pertencia ao Arneiro das Milhariças mas com a criação da freguesia do Espinheiro em 1928 foi desanexada para ser incorporada nesta última o que motivou um contencioso entre as populações que , felizmente, se diluiu com o tempo.


Espevitando a curiosidade, voltava ao lendário:


- A tia Joaquina Tecedeira, uma velhinha com mais de cem anos e que morreu em 1935 ouviu dizer que no Vale da Serpe apareceu uma cobra com asas que voava de cabeço em cabeço…E não se admirem porque em várias terras do norte correm lendas referenciando esse esquisito animal. Não será um estado evolutivo das espécies estudadas por Darwin ? Bem sei que nem todos entendem isto mas alguém sabe porque é que se chama da Serpe (serpente) ..?


Ó Zé trava aí….! Olha que te vais estampar……..!


Zé Paião não desarmava:


-Tenho em casa uma rocha cheia de conchas apanhada no Pedrógão. Alguém tem dúvidas que ali já foi mar , talvez há milhões de anos ? Querem vê-la ? Mas tenho mais…


Os interlocutores emudeciam e porque eram horas da ceia, aos poucos recolhiam a suas casas para saborear as couves cozidas com batatas acompanhadas duma fatia de pão de milho com azeitonas. Zé Paião, silenciosamente abandonava o rechiu para comer a tijala de sopa quente que o esperava. Durante anos foi um livro vivo , um carpinteiro exímio e um autarca exemplar.


Faleceu num dia triste de Outubro, exactamente no dia 7, do ano de 2001 deixando uma saudade profunda nos amigos e familiares. Jaz em campa rasa no cemitério da sua terra.