domingo, 25 de março de 2007

MEU AMIGO ENG. ROGÉRIO VARGAS MONIZ

Quando em 1943 eu conheci pessoalmente o Eng. Rogério Vargas Moniz, era ele o Director Técnico do Arsenal do Alfeite e foi ele, como amigo de infância da minha família açoriana, que me ajudou a encontrar o meu primeiro emprego, no Arsenal do Alfeite. Eu era muito novo, pois ainda só tinha 16 anos e fui colocado na Secretaria da Administração do Arsenal, onde era chefe um simpático Senhor António Salgueiro.

Aquele lugar estava vazio há muito tempo, e havia muitas centenas de processos sobre a minha secretária, para catalogar, um a um, ler um a um e resumir o seu conteúdo num enorme livro, para depois de registados, serem entregues ao Arquivo. Aquilo era um trabalho dos diabos, porque havia relatórios imensos sobre os mais diversos assuntos e tive de lê-los todos, para ficar ciente do que cada um tratava e em meia dúzia de linhas, tomar as respectivas notas no "big book" ! Certamente que ninguém queria aquele lugar, mas como sempre gostei de historiar, aquilo até foi divertido e passados uns meses, a secretária estava vazia !

Todos os dias eu tinha de fazer a travessia do Rio Tejo, de Lisboa para o Alfeite, numa vedeta da Administração, em companhia de mais altos funcionários, incluindo, como não podia deixar de ser, o Eng. Vargas Moniz.

NOTA: Se o leitor estiver interessado, poderá, via GOOGLE, escrever "Maior açoriano de sempre", onde entre centenas de pessoas ilustres açorianas, encontrar, por ordem alfabética, o Eng. Rogério Vargas Moniz, que chegou a ser Secretário de Estado da Indústria. Ao abordar este enorme lista, chega a parecer impossível que tantas e tão interessantes figuras das artes, medicina, indústria, poesia, pintura, política, etc., tenham nascido nos Açores ! Aí, valentes açorianos !

Vargas Moniz era um destes rapazotes, de 10 ou 11 anos, em 1912, quando viviam na freguesia dos Ginetes em S.Miguel, aquela formosa e lindíssima ilha de 750 Km/2, e filhos do farmacêutico Vargas Moniz que lá vivia.

Dada a necessidade do fabrico manual dos medicamentos, naquele tempo, este farmacêutico tinha de estar em contacto diário com meu avô, Dr. Carlos Leça, também lá residente nos Ginetes, e eram amigos íntimos da minha família.

Depois dos seus estudos, Rogério Vargas Moniz veio estudar engenharia naval para o Continente e acaba por ir dirigir as instalações marítimas do Arsenal do Alfeite, por volta de 1935.

Suponho que ele deve ser avô do actual Administrador Geral da TVI, José Eduardo Moniz, mais um açoriano de classe ímpar.

Foi nesta época que um valente ciclone atingiu Lisboa, conforme se pode ler dum escrito encontrado na NET, e onde se conta que se afundaram mais de 100 fragatas...e morrido mais de 20 pessoas... Eu nem sabia que havia 100 fragatas em Portugal...e, se calhar, o articulista queria dizer, barcos de pesca...:

« Estava a desencadear-se um dos mais violentos temporais de que há memória no nosso país. A pressão atmosférica desceu a 952.1 milibares e, agora sim, percebe-se que o valor lido pelos incompreendidos estudantes, não era mais do que o prenúncio da tempestade. Uma tempestade que teve rajadas de 200 km/hora e em que morreram mais de duas centenas de pessoas pelo país fora. Foram abatidas milhares e milhares de árvores. Lisboa foi uma cidade muito sacrificada. Inúmeros prédios danificados. Perderam-se mais de 100 fragatas do Tejo. Um hidroavião Clipper afundou-se na doca de Cabo Ruivo. A nau Portugal , virou-se. E, até o Infante D. Henrique, essa figura de proa do Padrão dos Descobrimentos, ainda em estafe, perdeu-se no Tejo. Curiosamente, nesse dia 15 de Fevereiro, estava previsto o lançamento da quilha dum petroleiro para a Marinha que viria a chamar-se S. Brás. A cerimónia foi adiada. »

Foi nesta altura que foi empreendida a construção jamais feita em Portugal, do navio petroleiro S.Brás, aquele monstro com uns 200 metros de comprimento, que havia de ser lançado à água em 1942. Mas antes do seu lançamento, se queríamos encontrar o Eng. Vargas Moniz, ele sempre estava de fato de macaco esverdeado, por entre os operários, ora acompanhando a construção da sua grande obra, a subir e descer as perigosas escadas de ferro dentro do navio, ora a saltar de oficina em oficina, a acompanhar pessoalmente todos os trabalhos. Mas o S.Brás, como todas as grandes obras, também havia de sofrer os seus revezes... e só homens do gabarito de Vargas Moniz, estavam à altura das grandes e complicadas soluções !

Costuma o povo dizer que "Grandes naus, grandes tormentas..."

O NAVIO ESTAVA AZARADO...

No dia do seu "bota abaixo", era um dia especialmente festivo para Portugal e no estaleiro onde o imponente e majestoso navio se encontrava, havia milhares de pessoas com as mais altas individualidades do Estado, incluindo o Presidente da República e o Primeiro Ministro Salazar, Almirantes e mais Almirantes, todas de "ponto em branco" e a garrafa de champanhe pronta a ser largada de encontro à proa daquele "monstro", enquanto à ré e aos lados do navio, estavam agarrados por fortíssimos cabos, vários enormes rebocadores, prontos a, depois do seu lançamento, o deslocarem para o meio do Rio Tejo, e fazerem descer as suas enormes âncoras.

Assim, com muitos foguetes à mistura, e banda de música, é dada ordem do lançamento, até porque se havia esperado pela maré alta, mas largada a garrafa de champanhe, que se partiu em mil bocados, perante a entusiástica alegria e muitas palmas de toda a gente, o navio gemeu de proa a popa, assentou-se no seu berço inclinado, de lançamento, mas só escorregou um metro e dali é que ele não queria sair... que desilusão e grande bronca !

Era um momento de pânico e no meio daquela tremenda barafunda, o Eng. Vargas Moniz, sempre no seu fato de macaco, corria de um lado para o outro, dando ordens para todos os operários envolvidos no projecto e passados poucos minutos, foram postos em funcionamento uns fortíssimos macacos hidráulicos de imensas toneladas, que já estavam preparados para empurrar o navio, mandada dar a força toda aos rebocadores, mas o "malvado navio", só escorregou mais uns metros e ficou parado novamente ! Havia que urgentemente substituir os macacos, por uns mais potentes, mas o tempo já estava a escassear e mesmo, depois de aplicados os novos macacos e dada toda a pressão... o raio do navio só escorregou mais uns metros e parou ! Até dava vontade de chorar...

Até parecia que o navio não queria tomar banho ! Aquilo estava um "parto difícil" !

Assim, e porque já toda a gente estava farta de esperar e o nosso Eng. Vargas Moniz a deitar fumo pela cabeça...lá se foi toda a malta embora, até porque a maré já estava a baixar e não estava propícia, e havia que esperar pelo dia seguinte, por nova maré cheia.

Essa noite deve ter sido a mais preocupante para toda a gente envolvida no projecto, até porque parte do navio estava em terra e outra na água, pelo que havia o perigo do enorme navio se partir ao meio... ou pelo menos ficar muito amolgado no fundo... no final do inclinado berço escorregadio de lançamento.

E foi já, sem pompa nem circunstância, que na volta da maré cheia, e mais rebocadores e mais macacos, fosse possível por o majestoso petroleiro a flutuar. Assim, quando entrei ao serviço, no dia seguinte, já o navio "tinha dado à luz" e se encontrava ancorado no meio do Tejo.

Um inquérito feito de seguida, veio a provar que a gordura (sebo) usada sobre o berço, tinha sido mal fabricada, mas disso não tinha qualquer culpa o nosso Eng. Vargas Moniz, nem ninguém do Arsenal do Alfeite, até porque nunca tinha havido antes, problemas com o sebo... Tinha sido uma grande e grave bronca !

Depois de uma data de meses, o S. Brás lá começou a fazer as suas viagens para Curaçau e Aruba, e depois a Barém, Porto Artur e Saint Peter, tendo passado pelos canais do Suez e do Panamá, para trazer o petróleo bruto que se iria refinar. Mas, em 1970, com a guerra em África, o nosso governo decidiu transformá-lo em navio de guerra, colocando-lhe duas valentes peças de artilharia, uma à proa e outra à ré, e parque de estacionamento de helicópteros.

Mas o "azarado" navio logo na sua primeira viagem com tropa a bordo, mal saiu da barra em Lisboa, teve uma explosão a bordo e teve de ser rebocado para o Tejo, onde esteve fundeado para reparação, ali em frente a Cascais, com as famílias da tropa convencidas de que já a malta estaria toda em alto mar...a caminho de Angola...

Depois de reparado, ele aí vai mar a dentro, mas perto de Cabo Verde, dá-se outra explosão a bordo, na casa das máquinas, que danificou os comandos hidráulicos de direcção e o navio foi levado para a Ilha da Madeira, com os pesadíssimos comandos manuais... a enorme roda de leme...operada por pessoal da tropa, que estava a bordo e se prestou para ajudar e, constantemente controlado pelo pessoal da Marinha.

Desta rocambolesca viagem, fazem fé uns interessantes depoimentos dum oficial do exército que ia a bordo, num Site da Internet, mas que esqueci o seu endereço, com muita pena...

Do petroleiro S. Brás, há muito que não se ouve falar nem sei do seu destino...Será que ainda está "vivo" ?

Nota especial para Maria da Graça Vargas Moniz.

quarta-feira, 21 de março de 2007

COM A MORTE NAS MINHAS MÃOS

Estava um dia lindo nos Ginetes, em S.Miguel e eu estava a brincar na rua, quando tinha os meus 10 anos.

No meio do profundo silêncio daquela terra, ouço o galopar desenfreado de um cavalo e de imediato, um velho chibatando o cavalo violentamente, e num repente, puxando pelas rédeas, fez parar a carroça mesmo em frente à nossa casa, tendo saltado dela e agarrado uma criança de dois anos, que estava desmaiada e deitada atrás, na caixa da carroça.

Meu avô estava em casa, por acaso, e abriu-lhe de imediato a porta do consultório, dizendo ao velhote para pousar a miúda na marquesa e berrou por mim, bem alto. "MÁÁÁÁRIO..." !

Aquilo devia ser uma situação muito grave, pois meu avô nunca costumava gritar assim, mas num segundo, eu estava ao seu lado a ouvir as suas explicações:

"Comprime aqui nos intestinos com a mão direita e com a esquerda, comprime o peito, alternadamente " .

Ele estava a valer-se da minha ajuda, porque o pobre velho, não conseguia ter coragem para o fazer.

Aquilo estava mesmo feio, pois a criança mal conseguia respirar e só se ouvia um ligeiro apitar do ar que teimava em não querer entrar nem sair dos seus minúsculos pulmões...

Meu avô pegou uma lanterna eléctrica, abriu a boca da garota e espreitou o melhor que podia, mas o que estava a bloquear a respiração, devia estar mais abaixo, talvez à entrada dos brônquios e, por mais que tentasse, nada conseguia ver...

Ao nosso lado, o velho avô, todo amargurado, chorava banho e ranho, pedindo, continuamente, "Sr.Doutor, salve a minha neta "....

A miúda tinha-lhe sido entregue pela mãe, enquanto ele tinha de tratar da horta onde vários cachos de uvas ainda verdes, pendiam ali por perto e a garota havia metido uma uva na boca e engolido inteira...

O velho, ao ver a miúda asfixiada, largou tudo, atirou com ela para cima da carroça, depois de lhe ter dado uma palmadas nas costas, e vai de procurar ajuda médica, mas eles estavam a uns 5 quilómetros de distância e, mesmo com o cavalo no seu máximo, talvez já não fosse a tempo. Na realidade, já se haviam passado alguns minutos e a pele da criança, já se estava a tornar azulada, situação indicadora de muita falta de oxigenação.

E eu lá estava a fazer o meu melhor, ora comprimindo as costelas ora os intestinos, sempre esperando que algum vagido me indicasse que o ar já estaria a entrar e sair, enquanto meu avô insistia para que eu não parasse e continuava a tentar ver cada vez mais fundo, usando várias "ferramentas" que tinha no consultório.

E eu tinha a morte dela, nas minhas mãos, eu não podia dizer que já estava extenuado...

Infelizmente, uns minutos depois, meu avô auscultou a miúda e depois com o dedo polegar e indicador, de uma mão, abriu-lhe os olhos e verificou que as pupilas estavam todas dilatadas !

Meu avô endireitou-se e largando as "ferramentas", disse-me: " Podes parar, porque ela já está morta "...

Não havia mais nada que fazer ! A miúda estava morta e nas minhas mãos...

Senti um arrepio imenso e tive de afastar-me de imediato, para não vomitar, pois nunca gostei de estar ao pé de mortos...

O pobre velho, avô da garota, lá pegou no seu cadáver e muito lentamente, saiu do consultório, enquanto os seus velhos olhos agora jorravam abundantes e amargas lágrimas de desespero e foi deitá-la na carroça que estava ali à espera, com o cavalo todo encharcado de espuma do seu suor...e sem estar amarrado a lado algum, talvez a pressentir o que estava a acontecer com o seu dono, ali estava à sua espera.

" E o que é que eu vou dizer aos pais dela ?, eles que tinham tanta confiança em mim !"...lamentava-se o velho ...enquanto as lágrimas lhe pingavam do queixo... e eu, ao vê-lo naquele sofrimento, também deixei cair algumas lágrimas. E ao tentar olhar bem lá para cima, para a cara de meu avô, ele a desviou, talvez para eu não ver a sua vista desfocada por alguma lágrima furtiva.

E lá subiu para a carroça, dando ordem de marcha, enquanto tanto meu avô como eu, estávamos ali feitos parvos, por não termos conseguido salvar aquele pobre criança das garras da morte, enquanto víamos a carroça afastar-se, lá para os lados da freguesia da Candelária, no extremo Oeste da ilha de S. Miguel.

A vida de qualquer médico de aldeia, tem muitas destas situações. Ele faz o seu melhor e o mais rapidamente possível, mas há situações em que cada segundo conta e este, foi mais um dos muitos casos que lhe passaram pela mãos e, a alguns, eu assisti bem por perto, todo amargurado !.

E recordo como estes episódios, poderão ser tratados hoje. Provavelmente e com muita sorte, o avô desta malfadada criança, pegaria o telemóvel, chamaria os bombeiros que, por sua vez iriam chamar o INEM que, por sua vez iria mandar um helicóptero para o sítio e levar a criança para um hospital, mas certamente que depois de um intervalo de tempo muito superior a duas horas...era impossível que ainda se mantivesse viva !

E isto, se o velho tivesse telemovel e se os bombeiros existissem por perto, o que não era o caso, e houvesse o INEM e houvesse helicóptero que necessita de mais de meia hora para aquecer os motores, e...etc. etc...

Aqui, possivelmente o leitor estará a pensar no porquê do velho não ter levado a criança para o hospital...mas será bom de lembrar, que o hospital existe em Ponta Delgada, a 25 Km de distância... da Candelária...

sexta-feira, 9 de março de 2007

MARTINS FARIA, UMA VIDA DE SONHOS

Gostava de oferecer este escrito, com muito carinho, a toda a minha família, para que finalmente, possam entender o porquê se serem assim como são, e não doutra forma. Esta forma ardente de viver trabalhando continuamente, mesmo perante os revezes da vida, o porquê de tanto gostarem de música e de compreenderem o porquê de quererem sempre sair dos problemas, de cabeça erguida.

« Meu pai, que se chamava José Augusto Martins Faria, nasceu em Abrantes, terra ribatejana muito bonita e que tem por vizinho, o belo Castelo de Almourol, plantado mesmo no meio do Rio Tejo, à sua frente.

Toda a sua curta vida, pois só viveu até aos 45 anos, foi recheada de episódios mais ou menos rocambolescos, porque demasiado grandiosos para as suas possibilidades e sendo um auto-didacta, viveu sonhando rodeado de imensos projectos que, talvez por terem sido vividos numa época muito conturbada por sucessivos e graves acontecimentos políticos, 1900 -1928, sempre encontrou enormes dificuldades.

Filho de professores, era muito exigente em perfeição e honestidade, virtudes nem sempre fáceis de encontrar em toda a gente, nem muito menos nos negócios ou na convivência política.

Ele talvez tivesse exigido demasiado das pessoas com quem se teve de cruzar pela vida fora, o que lhe havia de trazer alguns problemas e dissabores.

Logo de criança, nas suas férias escolares, o seu primeiro "emprego", foi o de cobrador de dívidas mal-paradas, levando debaixo do braço, uma pasta que, às vezes, estava recheada de dinheiro. Como era ainda um garoto, os ladrões nunca pensaram em o assaltar e, como era muito correcto nas suas operações, e de fino trato, foi escolhido por várias empresas que nele confiaram.

Na altura em que já estava perto da vida militar, e como tinha muita habilidade manual, havia aprendido a difícil tarefa de reparação de relógios de todos os tipos, mas inscreveu-se na tropa, como voluntário e logo foi parar a Angola onde haveria de aprender todas as táticas militares e se havia de distinguir pela sua bravura, habilidade e inventiva.

Estavam a aparecer em Portugal, os automóveis e ficou desde logo apaixonado pelas suas mecânicas, de que se viria a tornar exímio, paciente e exigente. Ele nunca gostou do "mais ou menos"... Ou se fazia bem feito, ou não se fazia mesmo...

Portugal vivia uma época muito conturbada de problemas políticos, tanto no Continente, como em África e foi em Angola que teve contacto com o General Massano de Amorim que viveu a "apagar fogos", tanto em Moçambique em 1914-26, mas também em Angola em 1900.

« General Massano Amorim, 1918 »

Martins Faria estava pois no seu ambiente favorito das mecânicas e era chamado a todo o lado, para resolver os problemas mecânicos nas máquinas de guerra, pelo que se tornou muito conhecido e até conseguiu fazer-se amigo dele e vendo que a tropa se estava a enfrentar com muita falta de colchões, propôs-lhe montar uma fábrica para esse efeito, o que o General aceitou de bom grado. Assim, com tão alto "padrinho", logo conseguiu arranjar sócios e vai de montar uma fábrica para o efeito, em Lisboa, mas quando já estava tudo pronto a funcionar, o General é afastado das suas funções em 1918 e as dificuldades burocráticas foram tantas, que a empresa faliu, levando a reboque os vários investidores e ele próprio... Foi o seu primeiro sonho desfeito "em palha"...

Ele tinha uma voz grave e muito bem timbrada, pelo que era muito agradável de ouví-lo falar. Pessoa dotada de uma memória fora de comum, tinha conhecimentos científicos de muitas matérias, e, por isso, era o rei da festa em qualquer reunião, tantas eram as anedotas e factos ocorridos com ele . E não eram só homens os interessados em ouví-lo, até porque as suas anedotas eram cuidadosamente refinadas para os ouvidos femininos. Embora de aspecto muito sóbrio, ele escondia uma tremenda atracção pelas partidas, desde que não ocasionassem danos às pessoas e ficava muito divertido a ver as suas caras de "apanhados"...

Ainda em solteiro, e vivendo numa pensão , ele esteve muito embeiçado por uma garota muito bonita, que lá estava, mas que fazia tudo para o afastar . Ela não o rejeitava de todo mas... não lhe facilitava a vida...

Mas como era muito brincalhão, e depois de um piropo mal aceite, afastou-se apressado, com cara de ofendido e meteu-se no quarto. Como possuia uma pistola, levou uma ameixa bem vermelha com ele, e deu um tiro, deitando-se no chão todo encharcado em "sangue" da ameixa, na cabeça. De imediato a garota e toda a gente presente, correu escadas acima e vendo-o deitado no chão com a pistola ainda a fumegar na mão, agarrou-se a ele num pranto desmesurado, dizendo-lhe que lhe perdoasse, que o amava muito, etc e tal. Meu pai aguentou um bocado, enquanto apreciava os comentários dos presentes que não entendiam o porquê daquele suicídio, até que se levantou e disse com aquela sua linda voz: «Mas a menina julga que há alguém, neste Mundo, que se vá matar por sua causa ?...»

A pobre garota, desde esse dia, nunca mais foi vista...

« Depois do Serviço Militar, juntou-se, cheio de projectos, a uma importante empresa em Lisboa, chamada Empresa Nacional de Máquinas, ali no Largo do Intendente, imponente edifício que faz frente para a Avenida Almirante Reis e Rua da Palma e, com um seu irmão gémeo, Eduardo Faria, desenvolveu projectos grandiosos com maquinaria vinda de França e, para tal, teve de lá se deslocar muitas vezes, reconhecendo a grande diferença de vida que lá se fazia. Tudo o que lá via, lhe despertava a vontade de trazer projectos para Portugal... A Empresa ocupava todo o rés-do-chão que, hoje, em 2007, está ocupado por imensas lojas pequenas.

Era nesta "caravela voadora" que os franceses queriam por Gago Coutinho a orientar a grande viagem de Lisboa ao Brasil.

Foi por esta altura, 1917, que o Almirante Gago Coutinho empreendeu a sua primeira viagem aérea entre Lisboa e o Rio de Janeiro, facto que o haveria de apaixonar, e vai a França observar os testes dum enorme avião de 6 motores, ao que ele apelidou de "caravela voadora", e viu que aquela enorme e pesadíssima máquina, estava muito longe de garantir êxito à longa viagem ao Brasil. Assim, vem para Portugal e publica na imprensa, um intenso debate público sobre os perigos daquele enorme avião, se fosse ele o escolhido. Nessa época, no Brasil já havia imenso entusiasmo pela aviação e todo o território já era muito sobrevoado, mas voar sobre o Oceano Atlântico, de Portugal para Brasil, era ainda muito complicado ! Essas viagens, já estavam a ser feitas, mas de Zeppelin.

Esta viagem de Gago Countinho e Sacadura Cabral, estava a provocar em toda a Europa, um enorme entusiasmo !

Em Portugal, 1919, vivia-se este grandioso e arriscado projecto, com enorme interesse e, acompanhado do piloto Sacadura Cabral, lá faz a viagem num pequeno avião de flutuadores, o Lusitania.

« Nos Estados Unidos, Henry Ford estava a conseguir montar em série, os automóveis Ford e isso o aliciou a também tentar em Portugal, mas com carros franceses, a Renault. Estava-se em 1919.

Henry Ford era, como Martins Faria, um grande entusiasta pelas mecânicas. Nesta imagem, Henry Ford ainda não estava a fabricar automóveis.

« No primeiro andar do palácio onde estava instalada a Empresa Nacional de Máquinas, ele lá vivia, perfeitamente confortável de situação financeira e foi numa das suas viagens aos Açores, S. Miguel, para orientar a montagem duma fábrica de serração, que viria a conhecer aquela que viria a ser, pouco tempo depois a minha mãe, senhora bonita, (desculpe-me a falta de modéstia) dotada de muita habilidade para interpretação de música ao piano, falando francês fluentemente, além de bordar bordados lindíssimas, e tendo aprendido a bordar as rendas de Bilros, que estava muito em moda nessa época, e pintava e desenhava com muito estilo, tendo recebido aulas do famoso pintor açoriano, Domingos Rebelo.

Meu pai, que era também um amante da boa música clássica e até tocava bastante bem violino, logo se sentiu profundamente apaixonado por aquela senhora, com quem viria a casar poucos meses depois.

Foi deste casamento que vieram os 5 filhos já descritos e fotografados, noutros artigos deste Blog.

Na casa de meu avô, a música era uma constante a todas a horas. Certamente que todos nós, mesmo antes de nascermos, já vínhamos embalados em música !

«Quando eu nasci, em 1927, na freguesia dos Ginetes, em S.Miguel, estava ele, no Continente, muito entusiasmado em trazer para Portugal, a referida marca de automóveis franceses, a Renault e conseguiu alugar um enorme edifício, ali para os lados do Arco do Cego em Lisboa, que iria servir de linha de montagem dos automóveis. a primeira do género em Portugal !

Era um projecto grandioso, talvez demais, para um jovem como ele era, de 43 anos !

Já com tudo montado à espera da primeira remessa de toneladas de peças dos automóveis, colocadas em comboio, em França, rebenta mais uma revolução em Lisboa e ele viu-se na necessidade de suspender a encomenda, até que a coisa acalmasse, mas poucos dias depois, rebenta outra revolução e os franceses desistiram de continuar com o projecto, dada a insegurança política que existia em Portugal. E lá se foi mais um dos seus belos sonhos...sem rodas para andar... e sem futuro para os seus filhos...coisa que já tanto o preocupava...

Foi por esta altura que meu avô veio ao Continente para ver a filha, mas é acometido duma apendicite agravada, que o ia matando. Meu pai começou a verificar que só lhe punham sacos de gelo em cima e a doença sempre a progredir, sem que os médicos alterassem o tratamento. Meu pai tinha trazido de França uma almofada eléctrica, com ajuste de temperatura e pensando que o sogro necessitaria era de calor, falou com o médico assistente que, muito contrafeito, lá o deixou experimentar e qual não foi o espanto de todos, quando vêem o doente a melhorar dia a dia e com alta, passadas poucas semanas. É engraçado aqui lembrar que anos depois, meu avô lembrava a todos nós, que devia a vida ao meu pai...que de medicina, sabia bem pouco...e até lhe tinha uma certa desconfiança...

Os problemas em Portugal estavam a agravar-se a grande velocidade, pelo que a própria Empresa, já estava a encontrar dificuldades de escoar o que cá possuia, tendo em stock uma data de motores de explosão de um só cilindro e 4 tempos, que estavam destinados, em especial às bombas de rega, na agricultura. Ele vendo o tempo que se gastava e dificuldade de calcetagem dos passeios e ruas de Lisboa, que eram feitos à mão, com pesadíssimos massos, logo pensou em estudar uma máquina que facilmente pudesse fazer esse trabalho, o que conseguiu, mas para as poder fornecer à Câmara Municipal, teria de enviar uma delas para demonstração.

Ainda tive acesso a uma fotografia dessa interessante máquina, mas ela me desapareceu, como por encanto... Assim, só me resta a possibilidade de a desenhar, mas infelizmente o Blog corta as imagens dos dois lados...

A Calcetadora tinha o tamanho aproximado de uma motocicleta.

O motor estava engatado a um poderozíssimo e complexo sistema de desmultiplicação, capaz de dar cerca de uma rotação por segundo e maior ainda para o lento movimento do carro, e um excêntrico de rápido declive, (como usam todos os relógios despertadores ao despertar) fazia subir o pesado embolo, que era largado repentinamente no solo, por intermédio duma violenta mola, do tipo usado nas suspensões dos automóveis. Um sistema mecânico, ia analisando a compressão das pedras na calçada e só deixava a máquina seguir, quando estas pedras estivessem alinhadas ao mesmo nível. Além dos imensos carretos e correias, ainda dispunha de diferencial ligado às duas rodas, para um movimento extra lento.

O operário só tinha de orientar a máquina para onde necessitava de trabalhar, o que era fácil, porque a máquina se deslocava automaticamente, muito lentamente, com a ajuda do motor. Embora andando a pé, o operário tinha acesso a um guiador, do tipo das motocicletas, com todos os seus comandos à mão e ia acompanhando todos os movimentos da máquina, passeando atrás dela. Aquilo estava positivamente muito engenhoso !

Para as poder colocar no mercado, ele teria de enviar uma para a Câmara Municipal de Lisboa, embora sabendo do perigo que isso iria constituir, porque sempre havia espiões industriais em todo o lado, mas como não encontrou outra solução, lá enviou uma máquina mas, rebentando outra revolução, com troca de ministros e Directores, nunca mais encontrou o seu paradeiro e pior, uns meses depois, vê propaganda francesa de ter à venda uma cópia da sua máquina... Mais outro sonho por água abaixo... agora à marretada !.

Desgastado pelos sucessivos desgostos, resolveu ficar sozinho na Empresa, tendo comprado as partes dos sócios, mas as complicações continuaram e viu-se obrigado a fechá-la poucos anos depois, mas colocando nos jornais a notícia de que pagaria a todos os credores, o que estivesse certo. Queria sair de cabeça levantada !

Com a saúde muito abalada, um amigo médico descobre que ele está gravemente doente de diabetes, que nunca tinha analisado, e a alimentação necessária para a sua correcção, despoleta-lhe uma tuberculose pulmonar, muito difícil, dolorosa e demorada de tratar naquela época, pelo que desiste de procurar o tratamento.

Mesmo assim, vai morar para a Parede, na linha de Cascais, e aí se entusiasma por montar uma Escola de Condução Automóvel, alugando um vasto terreno onde manda fazer ruas e mais ruas, encruzilhadas, pontes, parques de estacionamento, semáforos, etc. e como estava muito interessado em dar às mulheres a possibilidade de conduzir automóveis, convida minha mãe a aprender a conduzir, para ser instrutora feminina, coisa que era novidade em Portugal, mas um dia, para ver se ela já respondia prontamente aos travões, atirou-se para a frente do carro em que ela vinha a conduzir, e por pouco não foi atropelado, pelo que minha mãe logo aí desistiu de continuar a aprender e lá morreu mais um dos seus grandes projectos...agora na estrada...

Ainda tive acesso aos seus manuscritos sobre as provas de exame, mas infelizmente, acabei por perdê-los ...

Ele estava realmente em apuros, tanto financeiros como de saúde e vai para S.Miguel, viver com a mulher e filhos, para a casa de meu avô, lá para os Ginetes que, como médico, passou a viver imensamente preocupado com a possibilidade de contágio da filharada, os seus netos. Embora eu sentisse uma vontade enorme de lhe saltar para o colo, e ele o sentia, e levava os dias a chamar por mim, para o ajudar a polir à perfeição, as caixas de prata dos relógios Longines, e outras marcas, etc., sempre fui um tanto travado de o fazer, por meu avô e, por isso, tive muito pouco tempo de vida na sua companhia.

Mesmo aí, e na mira de conseguir mais algum dinheiro, ainda pratica a sua primeira profissão de rapaz, consertando relógios e vendo que em S.Miguel, ninguém conhecia as saborosas meloas de casca fina e imensamente saborosas que ele conhecia do Continente, vai de alugar um terreno e semear daquelas meloas, mas como elas nasceram todas ao mesmo tempo no fértil terreno açoriano, e com dificuldade de as colocar em todos os restaurantes com quem tinha contactado antes, vê mais este projecto afundar-se...e toneladas de meloas a apodrecerem no terreno ! Não sei ainda, se teria havido alguns ganhos... e lá se foi outro sonho, mas desta fez "afogado" em saboroso sumo de meloa...

« O Magneto que gerava 15.000 Volts »

Um dia, quando eu tinha 9 anos, ele nos chamou a todos (os 5 filhos) e colocou sobre a mesa da sala de jantar, um magneto que se usava muito em certas máquinas, para gerar os 15000 Volts para as velas dos motores, e mandou-nos agarrar as mãos todas uns dos outros, por forma a fazermos um circuito série, e dizendo a meu irmão, que era o mais velho, para quando ele, meu pai, mandasse, fazer rodar rapidamente um pequeno volante que aquela "coisa" possuia, informando-nos para prestarmos muita atenção ao dedo do último que estava ao pé dum arame, e era eu..., para vermos o lindo fenómeno que se iria passar... Estávamos todos muito entusiasmados...

Então, quando estávamos todos agarrados uns aos outros e o último estava com o dedo próximo do arame, ele, ainda gozando o lento enrolar do seu cigarrinho na mortalha e, com um sorriso matreiro, deu ordem de arranque. Obviamente, um valente choque de 15.000 V, percorreu todos os nossos corpos, deixando-nos estupefactos com o que tinha acontecido ! Na realidade, nunca havíamos apanhado um choque e as nossas expressões horrorizadas, deram lugar a sorrisos amarelos, e lágrimas nos olhos...em especial por ver meu pai rir de orelha a orelha, coisa que não lhe era muito habitual... Mais uma partida do velhote.... mas esta fez doer !

Entretanto meu pai vê a hipótese de escrever para um jornal de S.Miguel, imensas crónicas das suas rocambolescas viagens pelo interior de África, à laia de folhetim, o que sempre lhe dava mais algum dinheiro, e eram escritas à mão, por minha mãe, que tinha uma letra lindíssima, enquanto ele ia passeando pelo quarto, a desenvolver os seus raciocínios e a enrolar cuidadosamente os seus cigarrinhos, operação que sempre terminava com uma lambidela na língua, para colar o papel.

Julgo que teria sido o jornal «O Açoriano Oriental», que os teria publicado...

« Um dia, vi entrar no seu quarto, um órgão de igreja que estava avariado há muitos anos, e ele ali esteve à sua volta, meses seguidos, a ver e testar membrana a membrana, nota a nota, conferindo com um diapasão, a sua precisão. E conseguiu ! Para o experimentar e testar, toda a família tocou no órgão, muitas horas. Aquilo era lindo de ouvir ! Mas este trabalho já era muito violento para a sua débil saúde...

Assim, roído pela doença e pelos desgostos, acaba por vir a falecer nos Ginetes, aos 45 anos de idade, em 1938, quando eu ainda tinha 11 anos. Quando nos deixaram ir vê-lo morto, na sua cara, estava estampado um sorriso extremamente calmo... como se estivesse a pensar que iria agora fazer partidas para outros mundos...quiçá aos anjos...

Pobre homem, que mesmo perante tantos insucessos, continuou a trabalhar até aos seus últimos dias de vida !

Na freguesia de Ginetes, nunca se havia visto um enterro tão imponente, com banda de música e muitas centenas de pessoas, vindas de todos os lados, em especial de Ponta Delgada...