sábado, 29 de setembro de 2007

QUANDO HAVIA PRAXE ACADÉMICA por Prof. João Vitalino Martinho


E cá vai mais um agradável comentário do meu ilustre amigo e professor João Martinho, recordando os seus tempos de Coimbra, em 1951.

ARTIGO Nº. 73


« Quando havia praxe académica »

Pelo Professor João Vitalino Martinho

Naquele tempo, junto ao Arco de Almedina, na sempre cantada cidade de Coimbra, estavam quatro quintanistas de outras tantas faculdades.

Rodeavam um incauto caloiro que por ali passara saboreando o movimento das ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz, naquela tarde de Outubro em que as capas negras anunciavam o início dum novo ano lectivo.

Das pastas dos doutores sobressaiam as fitas largas que completavam o conjunto policromo da indumentária do estudante de então, em que sobressaía a imaculada alvura da camisa com o laço negro indicativo de distinção.

- Caloiro, você está mobilizado. Mantenha-se atento...já vai entrar de serviço...

O grupo, divagando sobre vários assuntos, procurava aliviar a carga psicológica do estreante nas lides académicas, solicitando a sua opinião de forma a provocar um mínimo de oralidade e acalmar os nervos do rapaz.

- Caloiro...! Respire este ar...Você está na cidade do amor. Tudo aqui é diferente da selva donde você veio. A propósito, você sabe o que é o amor ?

-O amor é.....um substantivo....

.Você não venha para aqui com essas maluquices que andou a aprender na escola primária e no liceu...! Você está em Coimbra !

Um outro quintanista pega na palavra e inquire:

-Ora diga lá quem é que escreveu:

"Estavas linda Inês posta em sossego.

De teus anos colhendo o doce fruito...

Naquele engano de alma ledo e cego...

Que a fortuna não deixa durar muito..."

- Parece-me que foi o Camões.

-Então você trata o nosso maior épico por tu ? Ou será que você é um predestinado que veio para substituir os Lusíadas pelos Caloiríadas . E rematando:

-Você vê aquela senhora que ali vai ? Vá atrás dela e faça-lhe uma declaração de amor. Nós vamos segui-lo para ouvirmos a sua adjectivação que trata por tu a de Camões. Toca a andar...

- Boa tarde minha senhora....pois eu...

A senhora parou mostrando o porte duma mulher esbelta e encorajou o interlocutor:

-Então diga lá o que tem para me dizer.

O caloiro, adquirindo alguma serenidade, confessou estar naquela situação, por imposição da praxe académica de Coimbra... que o grupo que disfarçadamente os observava, o tinham encarregado de interpelar a senhora para fazer uma declaração de amor.

- Então faça...

Não se cansou o caloiro de evidenciar a simpatia e compreensão vividas nessa sua primeira experiência da praxe como estudante de Direito. Agradeceu e pediu desculpa...muita desculpa, confessando não ter atrevimento para importunar.

Entretanto os doutores aproximaram-se e quando se preparavam para retirar o mobilizado daquela situação, a senhora pegando-lhe no braço dirigiu-se ao grupo.

-Este senhor não sai daqui...está sob a minha protecção e vai lanchar comigo na pastelaria defronte. E foram.

No decorrer do chá, o caloiro ouviu palavras de apreço pelo seu aprumo e compostura com votos para que fizesse o seu curso com brilho e honrasse a Universidade de Coimbra.

A senhora era professora da Faculdade de Direito.

Nota: Este acontecimento foi testemunhado pelo autor em 1951.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

«TI BORNEL » Por Prof. João Martinho





Editor:

Pela mão do meu ilustre amigo Prof. João Vitalino Martinho, segue-se mais um dos seus contos referentes à sua terra Natal, o ESPINHEIRO, em pleno Ribatejo.

Ele sempre lá encontra gente que marcou toda a sua mocidade e que ele tão bem descreve nas suas crónicas. Como sempre, é uma honra poder incluí-lo no ENGENHOCANDO.






Prof. João Vitalino



MANUEL FELIPE BENTO

Ti Bornel

18...? 19...?

De acordo com documentos coevos arquivados na Torre de Tombo, consta que no dia 13 de Agosto do ano de 1527, na cidade de Coimbra, Jorge Fernandez, escrivão da chancelaria da comarca da Estremadura, terminou o registo das cidades, vilas e lugares e dos moradores que havia em cada um deles, por mandato do rei D. João III.

Foi no desempenho deste encargo que o acima referido Jorge Fernandez chegou a Alcanede, fez o seu levantamento e incluiu no termo desta vila, a aldeia do Espinheiro com 11 vizinhos, a qual, posteriormente, andou confundida com outros Espinheiros e Espinheiras espalhados pelo país, por cronistas um tanto distraídos.



Por tradição oral atribui-se aos seus primeiros residentes, a condição de pastores que por aqui se fixaram, mercê da abundância de pasto e águas correntes e a quem, dentro da lógica mais elementar, se lhes atribui o uso do pau para condução dos animais e amparo corporal nas movimentações em terreno acidentado. O pau está na história humana retratado no organograma da evolução do homem em que o homo habilis e o homo erectus aparecem usando tal ferramenta como extensão da mão, na luta com as feras.

Na idade média quando era preciso mobilizar o povo, como última reserva de carácter militar, a arma era o pau, usado muitas vezes sem contenção, como sucedeu com a fuga das hostes castelhanas após a batalha de Aljubarrota, o que levou o Condestável a pedir compaixão pelos vencidos que foram dizimados à paulada, na confusão da retirada.

D. João I mostrando, um dia, grande incerteza na conservação da praça de Ceuta, D.Pedro de Menezes lhe respondeu que com aquele aleo (cajado) que tinha na mão, defenderia a cidade de toda a barbárie.

Rendido à evidência da utilidade e eficiência de arma tão barata como rudimentar, Ti Bornel, serrador de profissão já criança, ensaiou nos primeiros passos num jogo que alternava com a agilidade necessária para o executar. Quando chegou à idade adulta, não havia no Espinheiro, nem nos arredores, opositor capaz de o enfrentar.


Na disputa pela supremacia envolveu-se algumas vezes em luta rija com os conterrâneos.

Conta-se que o Ti Zé Rosa, um dia, provocou-o no sentido de se confrontar com toda a violência para, de uma vez para sempre, ficar definida a superioridade. Ti Zé Rosa, em poderoso ataque, levou o adversário em permanente recuo desde o Rio dos Cantos até ao entroncamento com a Rua Principal, já a cantar vitória, sem sequer se aperceber que Ti Bornel tinha estado permanentemente na defesa. Mas ali mudou o cenário, Bornel passou ao ataque e disse para o adversário:

- Ó Zé escolhe lá a oliveira do Forno Telheiro onde queres ir descansar...!

E o Zé não foi capaz de progredir um só centímetro... sempre a recuar... a recuar... até uma das oliveiras onde terminou a pugna e se definiu de que lado estava a superioridade.

Não se pense que Ti Bornel era um homem de forte compleição física. Antes pelo contrário, dava até a impressão que uma leve aragem era o suficiente para o deitar por terra... e disso se convenceram quatro provocadores duma aldeia vizinha que o meteram no meio deles com a intenção de lhe dar uma grande sova.

Três saíram com a cabeça partida, após alguns minutos. O quarto resistiu até que o Bornel, dando-lhe um toque numa das mãos, obrigou-o a largar o pau.

Perante a incapacidade do adversário, completamente desarmado, Ti Bornel deu por terminado o combate, enquanto o outro resmungava:

-Essa foi de mestre ó mestre !

Dando troco ao vencido, Bornel rematou:

-Esta aprendi-a com o David quando cá veio um gajo de Pataias desafiá-lo. Só que ele, antes de aplicar a receita, partia o pau ao meio e deitava metade fora. Nunca mais o Espinheiro cá tem um jogador como aquele...!

Bornel viveu numa modesta casa situada num minúsculo aglomerado que o povo baptizou de Etiópia e por isso alcunhou-o "Conde Bornel Imperador da Etiópia".

Quando morreu com noventa e muitos anos, foi-lhe prestada uma significativa homenagem que, no Espinheiro, só era merecida por aqueles que ao longo da sua existência, davam provas de honradez e apego ao trabalho.

Nessas horas em que se fina uma vida, costuma o povo, no seu discernir, evocar factos da vida do extinto, como exemplo a seguir. Do Bornel ficou aquela arrancada quando disse que não tinha trabalho a sarrar e por isso ia para férias.

Férias aonde ? indagaram.

A cavar terra que é para onde deviam ir muitos malandros que andam por aí na moinice...!

E na terra ficou para sempre com o rosto voltado ao Céu, como que contemplando as estrelas.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

MANUEL BARÂO pelo Prof. João Vitalino Martinho




Nota: Pela mão do meu amigo Prof. João Vitalino Martinho, aqui vai mais uma das suas interessantes crónicas sobre o ESPINHEIRO, sua terra natal.









Manuel Barão dos Santos Justo (1926 - 1998 )


O Manuel Justo...recordá-lo acarreta um sofrimento que faz doer a alma e oprime o coração.

Um moço irrequieto e buliçoso...cheio de sonhos...de sorriso aberto...abraçando a vida com entusiasmo, amigo do seu amigo, brincalhão e disponível para ajudar...espalhou simpatia e foi um bem amado da gente do Espinheiro.

Quem não se lembra dele a cantarolar na Ribeira, de balde ao ombro, em direcção ao Açude onde ia fazer as regas encomendadas pela mãe, D. Elvira...nos bailes onde se distinguia pela distinção com que se dirigia às raparigas...no lagar do pai onde participava em todas as operações comandadas pelo mestre, ti Florindo...na vivacidade com que participava nas discussões entre rapazes do seu tempo.

Manuel encarou a vida com um salutar optimismo até que, passados alguns anos, na sua juventude, se apercebeu do erro que cometeu quando se negou a seguir estudos que o libertassem da duvidosa subsistência proveniente da agricultura. O facto de o pai ser possuidor duma das mais abastadas casas do Espinheiro, não o motivou para seguir uma carreira diferente da que, por atavismo, lhe estava destinada, mas a breve trecho se foi apercebendo do endividamento progressivo do pai que equipou o lagar com maquinaria moderna, afogado por juros altíssimos.

As perspectivas, já de si sombrias, agravavam-se com a dificuldade de colocação dos produtos da terra e a desenfreada exploração dos intermediários.

A flutuação dos preços dos produtos e a ausência de incentivos a quem verdadeiramente trabalha a terra, criou-lhe no espírito um sentimento de frustração e de revolta que o levou a abominar as searas, os olivais, os lagares, os gados, as eiras, etc.etc.

Manuel, já casado e com um filho, abalou para França...emigrou.

Tal como os primeiros estudantes do Espinheiro que representaram uma insubmissão ao fatalismo da condição de pobres que lhes determinou uma consciência de cidadania, Manuel entrou no mundo do trabalho francês sem uma especialização que lhe permitisse disputar um lugar compatível com o estatuto que desfrutava na sua terra.

Arranjou emprego numa conhecidíssima fábrica de perfumes parisienses.

Deveras agradado com a descontracção das suas colegas francesas que se divertiam quando, por desconhecimento da língua, Manuel confundia um caixote com umas luvas ou via pás por todos os lados.

Certo é que a gerência não lhe conhecia grande rendimento mas fez dele uma espécie de cartão de visita com que promovia os seus produtos universalizados em todos os locais frequentados por este espinheirense.

E como ? As colegas, com a tolerância das chefias, despejavam-lhe frascos de perfume na cabeça e nos estofos do carro, de modo que se transformou num expositório andante de odores que tresandavam à distância.





Manel Justo, à direita na imagem. Ao seu lado, o autor do escrito.





Quem lhe entrasse no carro, saía de lá comprometido como se tivesse saído dos braços duma coquete, tal era a saturação das essências entranhadas no habitat. Le portugais, como ficou conhecido, na gíria da fábrica, rodeado de certas atenções consequentes do seu ar distinto, quase sem dar por isso, deu à sua vida uma volta de 180º...

Adoptou hábitos e vivências dos meios cosmopolitas franceses de modo que, quando veio passar as vacanças à terra, conduzindo uma viatura desportiva de luxo, descapotável de dois lugares, a família e os amigos mal lhe reconheceram a matriz.

O Manel Justo caprichava em mostrar um grande desafogo por oposição ao desprezo com que foi tratado na sua Pátria. Instava mesmo os amigos a abandonar esta pasmaceira e convidava-os, maliciosamente, a dar uma voltinha para apreciarem o que era um carro.

Eles, ingénuos iam, mas à noite, quando regressavam a casa descuidados, eram recebidos rancorosamente pelas mulheres que os invectivavam:

-Onde é que andaste ? Cheiras a putas...!

Manel Justo resumiu a sua filosofia de vida na intolerância ao fatalismo, como arma de arremesso, e no humor como defesa natural que usou nas situações difíceis em que, por vezes, foi indevidamente interpretado.

Brincalhão, gostava de soltar uma gargalhada sonora comunicando optimismo e ajudando a superar dificuldades, como aconteceu com alguns conterrâneos em França.

Como afirmou bastas vezes, foi emigrante por repúdio às condições de vida que lhe eram impostas e não com o objectivo de amealhar um pecúlio à custa de sangue, suor e lágrimas.

Judiciosamente, defendeu-se de quem criticou o seu estilo de vida, com uma espécie de declaração de voto:

- Eu antes quero viver rico e morrer pobre do que viver pobre e morrer rico.

Recordando os tempos felizes com ele compartilhados no Espinheiro, o autor sublinha a rectidão dos seus actos que bem podem traduzir-se na expressão: amicus certus in re incerta cernitur (amigo certo nas horas incertas).

Repousa em paz no cemitério da sua terra natal.

PAZ À SUA ALMA