terça-feira, 30 de setembro de 2008

A FADA DO MEU LAR

Mesmo após tantos anos, da minha esposa ter falecido, não há um Natal, em que não me lembre dela, aquela mulher que tanto se esforçou, por me dar felicidade, durante quase 50 anos, de casado...

Na realidade, tivemos uma vida um tanto difícil e sempre com dificuldades financeiras, para podermos acompanhar os nossos 3 filhos a terem uma vida saudável , feliz e simplificada.

Mesmo agora, com 81 anos, mesmo um tanto longe dos meus filhos que sempre têm as suas vidas diferentes e os seus Natais especiais, eu sinto e julgo que sempre sentirei a sua falta. Ela era bem a minha outra metade...

E é nestas datas, em que mais recordações me vêm ao espírito, aquela azáfama da véspera, aquela quantidade de doces que ela sempre fazia, a contar com todos os filhos, além duma velhinha, a sua avó materna, que esteve a viver uma data de anos na nossa companhia, e de que já falei naquela crónica recente, e intitulada " Senilidade...coisa estranha...".

Verdade seja dita que, talvez por nunca termos vivido com abundância de nada, nem eu, nem os meus filhos rapazes, fomos atraídos por andar à procura de prendas, mas bem pelo contrário, a minha filha Antonieta, era ao contrário, tal e qual a mãe, e vivia todo o ano à procura de alguma coisa a que todos achassem graça naqueles dias 25 de Dezembro e, ainda todos de pijama, nos reuníamos na sala, para ver o que nos teria calhado de oferta.

Nós, os rapazes, raramente conseguíamos descobri algo para aumentar aquela enorme rima da embrulhos e caixas coloridas, não tanto pelas despesas que teríamos de fazer, mas por falta de habilidade, embora sempre esperando que alguém se tivesse lembrado de nós...

Mas era emocionante ver aquela pilha de presentes amontoados, à espera que a minha esposa começasse a ver os nomes que estavam escritos em cada embrulho e assim, sempre havia presentes para toda a gente, coisas sempre baratinhas, pois como ela só trabalhava em casa, tinha todo o comando nas verbas que eu ia recebendo todos os meses, de ordenado, e lhe entregava totalmente, pois já sabia que ela teria o cuidado de reservar alguns tostões para os meus cigarrinhos e alguns litros de combustível para o nosso velho carrinho.

E sempre ficávamos deslumbrados com as coisas que ela descobria, sorrateiramente e ia guardando ao longo do ano, para aquele dia festivo, tudo bem escondido nos armários.

A gente não necessitava de dizer se precisava disto ou daquilo, porque ela até sabia melhor do que nós e já andava a procurar no mercado os seus preços, para as adquirir em conformidade com as suas possibilidades financeiras, para não por em perigo a nossa alimentação, educação, a renda de casa, a água, a luz, o telefone e algumas roupas mais necessárias.

Ela tinha a habilidade de ter tudo na mão, adaptando os fatos dos mais velhos, para os mais novos, e embonecando a nossa casinha com imensos bordados e rendas lindíssimas, que nós íamos vendo crescer dia a dia, todo o ano.

Recordo aqui, que em certa altura, ela se havia queixado de que o relógio despertador, a que ela dava corda todos os dias, sempre estava na sua mesa de cabeceira, e fazia muito barulho com o seu tic-tac constante, durante a noite, e resolvi ir à procura de um mais silencioso, para lhe oferecer num Natal, o que consegui e muito bem embrulhadinho, o fui guardar dentro das minhas tralhas, longe da vista dela.

Mas no profundo silêncio que existia à volta daqueles armários, ela estranhou um tic-tac e tanto procurou, que foi encontrar o bonito embrulho onde ele estava e logo pensou...cá está o relógio que ele me vai ofertar pelo Natal, mas calou-se muito calada e matreira...

Esse relógio era um despertador amarelo, realmente muito silencioso e, como todos, possuía um "cabelo" agarrado ao seu volante, para lhe manter o movimento de vai-vem.

Por graça, às tantas eu lhe dizia: "E é amarelo...." e ela sorria, simplesmente... gozando...

"E é redondo..." e ela sorria...

"E tem cabelo...." e ela sorria, enquanto eu julgava que ela nunca mais saberia do que eu estava a falar.



Até que chegou o Natal e ela na mesma sorridente, depois de ver o relógio, me disse que já sabia, porque um dia, tinha ido à oficina dos meus brinquedos e havia ouvido o seu tic-tac..., mas beijou-me agradecida, na mesma.

É engraçado recordar que esse mesmo relógio, continua sobre a sua mesa de cabeceira, parado desde o dia em que ele faleceu... há já uma data de anos...

Aquilo era um dia de beijos para toda a gente e a cada prenda que era desembrulhada, a expectativa de cada um na sua descoberta, a alegria imensa de poder receber uma prenda tão desejada.

Qualquer coisinha que nos calhasse, já era uma festa, nem que fosse um lenço ou uns peúgos !

Mas a minha filha Antonieta, essa era demais, pois até ia comprando coisas para ela, durante o ano, na mira de ter mais uns embrulhos para abrir e fazia uma grande festa... ao abri-las...
Nós, rapazes, nunca sabíamos de quem vinham tantos presentes.

Quando apareceram as panelas à pressão, eu havia ficado deslumbrado, pois sabia que estando a água à pressão, aumentava muito a sua temperatura, e por isso, se podia cozinhar mais rapidamente.

Ainda eram raras no mercado, mas eu consegui uma e vai de ser mais uma prenda para a minha esposa, embora lhe notasse umas certas reticências, quanto ao seu uso... não fosse aquilo explodir... mas um tanto contrafeita, vai de colocar-lhe tudo o que necessitava uma boa sopa de feijão e lá a colocou ao lume.

Mas mal a água começou a levantar a válvula e a fazer pxi pxi pxi, ela largou tudo e fugiu da cozinha, cheia de medo, espreitando de longe, não fosse aquilo fazer PUMMMM! Estava mesmo apavorada !

Ela não acreditava muita nestas coisas, ditas modernas e ficava sempre de pé atrás...

Claro que eu logo entrei na cozinha e reduzi o lume, até porque só interessa um leve pxipixi, indicando que a pressão está a 2 Kg, ou sejam 200ºC... julgo eu.

Depois, ela desejou ver se já tudo estaria cozido e houve que a abrir, pelo que vendo que ela não tinha coragem, lá fui levantar a válvula e depois de baixar a pressão a zero, fui colocá-la debaixo da torneira da água fria, para a poder abrir, o que ela acompanhou e, a partir dessa data, até ao fim da sua vida, sempre usou panelas de pressão, que em várias festividades, eu sempre ia conseguindo comprar e assim ela ficou a possuir umas 3 ou 4, que ainda hoje existem.

Em todos os Natais, a minha esposa fazia um grande alguidar de velhoses, aquela massa de abóbora, que é fermentada durante muitas horas e depois de crescida, se põe a fritar ao lume, em pequenas bolas, e depois é polvilhada com açúcar e canela. Aquilo era realmente, uma delícia !

Como éramos muitos, tinha de fazer sempre uma boa quantidade e as ia guardando num armário.

Como disse há bocadinho, estava connosco, aquela velhinha simpática a D. Rosa, que se juntava a nós no abrir das prendas, e sempre recebia coisas de que necessitava, rindo, agradecida por se terem lembrado dela.

A sua alimentação, tinha de ser muito especial, praticamente sopa de legumes e sopas de café com leite, além de uma peça de fruta, coisas que ela pudesse comer e trincar com as gengivas, pois dentes é que já não tinha há muitos anos.

Mas na véspera daquele Natal, ela caiu à cama e até nos parecia que iria morrer a qualquer instante...

Muito quieta e pálida, mais parecia uma defunta, enquanto a minha filha muito amargurada, andava à sua volta a pedir-lhe para não morrer nesse dia e esperasse para depois do dia 26, para não estragar a sua festa. Mas a velhinha, ali continuava, de olhos fechados, e sem dizer palavra, só respirando!

Todos estávamos muito tristes, pois ela já tinha imensa idade e não entendíamos o porquê de ela estar assim a passar-se, mas ao fim do dia 24, ela abre os olhos e sorrindo, muito matreira, nos diz que esteve muito agoniada, com a quantidade de velhoses que, à socapa, ia roubando das travessas...

Felizmente que as suas aflições passaram e no dia 25, já estava pronta para receber as ofertas e voltar às maravilhosas e fôfas velhoses que a minha Alice sabia fazer como ninguém.