sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

E a criança mal podia respirar


Como estudioso de electrónica, desde há imensos anos, e sendo um radioamador, com indicativo oficial, CT1DT, tinha de estar muitas vezes empoleirado no telhado da minha casa, a montar e estudar o comportamento de antenas.
Para ter muitos contactos com os outros colegas radioamadores, eu sempre usei a banda dos 40 metros, ou sejam 7 MHz. banda muito útil para quase todas as horas do dia e noite

Um certo dia, apareceram-me umas dores no pescoço, muito incómodas, um torcicolo, e que não me deixavam voltar a cabeça para lado algum... mas como estava a estudar um circuito eléctrico numa placa do tamanho de um vulgar cheque de banco, e ao tentar ajustar a sua ressonância, escolhi um sítio isolado no meu corpo, uma perna, mas quando o circuito começava a aproximar-se do que eu procurava, a perna começava a aquecer e eu já estava a usar uma baixíssima potência do emissor, o que me fez enorme confusão, até porque já tinha lido muita coisa sobre diatermia, mas a medicina só usava potências enormes, da ordem dos 100 e mais Watts !
Como diabo tão minúscula potência, me estava a amornar a perna ?


Dada a minha torturante dor do pescoço, lembrei-me de a colocar no sítio onde me doía, metida dentro duma capa de cheques, e ali fiquei, feito parvo, à espera de ver o que estaria a acontecer, mas ao fim de 5 minutos, já farto de estar naquela posição, retirei-a, mas as dores haviam desaparecido ! Aquilo até parecia magia !
Chamei a minha esposa que, há muitos dias, tinha umas dores na coluna, devido a uns esforços que havia feito e perguntei-lhe se gostaria de experimentar "a coisa", pelo que ela, muito admirada de me ver já sem as dores no pescoço, logo se prontificou e se sentou ali ao meu lado, e eu coloquei a placa na zona sacro-ilíaca, entre as cuecas e a coluna, durante uns 15 minutos.
Qual não foi o nosso espanto, quando ela se refere a que as dores tinham desaparecido por completo e até levou as mãos ao chão, dobrando-se pela cintura, para me mostrar que o podia fazer agora, e sem dores...

Este assunto tão interessante, levou-me novamente à leitura de várias obras sobre as Ondas Curtas na Medicina, que possuo, todas em espanhol, mas em todos os aparelhos, eles usavam dois eléctrodos, enquanto eu só usava UM.. Ou seja eles usavam bipolaridade, enquanto eu estava a usar unipolaridade, além de minúscula potência...

Certo dia, uma vizinha me bateu à porta e trazia um livro de capa encarnada na mão e me disse:
"O Sr. Portugal, que muitas vezes vejo em cima do telhado com as suas antenas, e a trabalhar com ondas de radio, vejo aqui escrito que, para a sinusite, coisa que me atormenta há imenso tempo, eles dizem que as ondas de radio funcionam muito bem", e acrescentou: "O Sr. podia aplicar-me essas suas ondas de radio ? "

Como eu já tinha feito os ensaios comigo mesmo e com a minha esposa, prontifiquei-me a fazer mais um ensaio com a Placa, tendo o cuidado de lhe solicitar que mal ela sentisse um ligeiro amornamento, me dissesse, para eu ainda poder baixar mais a potência do gerador de radiofrequência, o meu emissor das telecomunicações.

Ao fim de 15 minutos, quando lhe retirei a Placa da testa, ela logo me disse: "Eu já sou outra e até respiro com muita facilidade e já nem tenho as dores de cabeça nem os olhos a chorar, nem o nariz a pingar..."
Aquilo era bom demais, mas indiquei-lhe que devia voltar no dia seguinte, para fazer mais uma sessão.
Realmente ela apareceu, mas já sem qualquer sofrimento, e dizendo que por estar tão bem, talvez já nem necessitasse de mais.
São passados muitos anos, pois isto ocorreu em 1980, e como encontro muitas vezes esta vizinha, sempre lhe pergunto como está, e a resposta é sempre a mesma : "Como nova".

Foi por esta altura, que estando de visita a um campo de aviação, vim a conhecer um jovem dentista que estava a aprender, como eu, a pilotar um avião ligeiro ULM QuickSilver. Era casado com uma médica, que estava presente e dum miúdo muito simpático, o Joãozinho, mas com aspecto muito triste...

"Mas você quer ver-se livre dessa teimosa sinusite, com duas sessões ?" - perguntei-lhe eu.
Como ele estava sempre com corrimento do nariz, e dores de cabeça, bem localizadas na testa, o que era péssimo para o seu oficio, dado estar sempre a necessitar das duas mãos, aceitou e nesse mesmo dia, que era sábado, ele me apareceu com a esposa e o miúdo.
Os médicos, normalmente, não querem nem por nada ouvir falar de medicinas alternativas, e a doutora ali estava ao meu lado, a assistir ao tratamento do marido, mas eu reparei que o miúdo estava com grande dificuldade em respirar... quase só lhe faltava chorar... muito quieto e calado... cheio de medo...
E vai daí, perguntei-lhe: "Mas esta criança está mesmo com falta de ar!?", ao que ela me respondeu que era um martírio, pois tinha de estar sempre com uma "bomba" à mão e muitas vezes haviam ido a um hospital, às tantas da madrugada, quando os ataques de falta de ar aumentavam, para lhe darem oxigénio...
"E pior" , acrescentou ela, "é que não vemos forma de resolver este problema".

Como sempre gostei muito de medicina e acompanhado meu avô médico, logo desde miúdo, como já tenho contado várias vezes neste blog, perguntei à Dra. "A senhora permite-me que o ausculte ?"
Embora com ar de muito admirada, e testa franzida, ainda me perguntou : "Mas o Sr. também sabe auscultar ?"
Logo agarrei num dos estetoscópios que sempre tenho em casa, para medir a minha tensão arterial.

Mas para meu espanto, ao ouvir o pulmão direito do garoto, onde podia ouvir a entrada e saída de ar, perfeitamente, no esquerdo, era silêncio total ! Não havia daquela criança estar tão aflita!
E entregando o estetoscópio à doutora convidei-a para repetir as minhas medidas e ela logo confirmou que realmente aquele pulmão parecia parado...
Perguntei-lhe: " Permite-me que lhe aplique uns 2 W de ondas de radio e só dois minutos ?", ao que ela respondeu que não via qualquer problema nisso e assim apliquei a Placa.
O pai do miúdo já tinha feito a sua sessão e já se sentia "desentupido" e aliviado, quando se foram embora, mas eu fiquei desejoso de ver o como o miúdo se iria mostrar no dia seguinte, pois era Domingo e era uma experiência com uma criança de tenra idade.

E assim aconteceu, voltando os três, no dia seguinte para uma segunda sessão do pai, embora estranhando muito o comportamento de calma do miúdo, já sem qualquer amostra de falta de ar, mas como os seus pais nada diziam, acabei por ir buscar o estetoscópio e vai de auscultar novamente o miúdo, já ouvindo lindamente o ar a entrar naquele pulmão esquerdo do garoto, agora activo uns 80 a 90 %. e voltei a entregar o estetoscópio à mãe para ela ver a diferença.
Aí perguntei-lhe: "Mas o miúdo tinha tido necessidade da "bomba" desde aquela sessão da véspera ?" ao que ela respondeu que não só não a havia pedido e até tinha levado o resto da tarde e todo o dia seguinte, em correria e alegria pela casa, coisa que há muitos meses ele não poderia fazer, com ataques de falta de ar.
Ainda lhe pedi um raio-x daquele minúsculo tórax, mas embora a mãe me dissesse que traria no dia seguinte, por qualquer motivo, que ainda hoje desconheço, não trouxe.

Tive de esperar uns 5 anos, porque não tinha a sua direcção nem telefone, até a voltar a encontrar em consultas, noutra terra, e mesmo pelo telefone, lhe perguntei pelo miúdo, ao que ela me respondeu que nunca mais tinha tido falta de ar, havia crescido imenso, era muito bom aluno e até fazia desporto, sem se cansar. Estava curado !

O entusiasmo pela diatermia feita com os pequenos emissores dos radioamadores, foi tal, que me obrigou a ter de construir mais de 400 Placas... mas ao chegar aos meus 80 anos, acabou-se a paciência e nunca mais construi nenhuma.

Entretanto, e durante todos estes anos, vários médicos me apareceram para experimentar a Placa neles ou em familiares e sempre com magníficos resultados.
Ainda hoje, sempre que o meu pulmão esquerdo começa a piar e a dar-me tosse, lá vão alguns minutos sobre a clavícula desse lado, e fico sem pieira, durante uma data de dias.

Vai uma pessoa entender estas coisas...

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Meu amigo João Pereira


Todos nós temos pessoas que se cruzam na nossa vida e há algumas que sobressaem por algo nos dizerem muito de especial. João Rodrigues Pereira, foi em deles.

Ele tinha uma figura interessante e até se parecia muito com o actor de cinema americano Clark Gable.
Quando adoeci dos pulmões, em 1945, fui encontrá-lo e conhecer, no sanatório CENTRAL do Caramulo, lá para os lados de Tondela, e ele tinha tuberculose num rim.
Felizmente que ele já estava em estado de cura e logo que me aconteceu o mesmo, nos colocaram na mesma mesa da sala de jantar, onde já estavam dois técnicos dos CTT, o Mário Martins, e o José Fonseca.

Naquela sala enorme, havia gente de todas as idades e profissões, mas eu era o mais novo.
Talvez por eu ser uma pessoa muito extrovertida, logo chamei a atenção de alguns outros doentes, uns em melhor estado do que eu, e outros bem pior.

Uma coisa de que eu gostava muito de fazer, era caricaturas e havia ali, naquela malta toda, imensas para fazer. Assim escolhi o que tinha uma cara mais fácil de caricaturar, o que os meus colegas da mesa, acharam imensa graça, porque estava mesmo parecida...

Como o meu amigo João Pereira, tinha muita habilidade para escrever versos, logo iniciámos uma página que era colocada no painel da sala de jogos, com os seus versos e as minhas caricaturas.

Este meu amigo João Pereira, era engenheiro Geógrafo, e toda aquela malta era casada, mas vivendo muito afastados das suas familias. Só eu era ainda solteiro.


Nas mesas mais próximas, estavam também doentes, médicos como o Dr. Amaro da Silva Rosa, o desenhador Alvaro Caffer e Reno, e muitos outros, pintores, caixeiros viajantes, professores e sei lá, quantas mais profissões.

Logo a seguir`ao almoço, onde nos tínhamos de apresentar de camisa, casaco e gravata, havia um espaço de tempo de quase uma hora, antes de termos de ir fazer as CURAS, em que todos tínhamos de estar deitados numas camas estreitas de ferro, num alpendre, a apanhar os belos ares da montanha, sem nos deixarmos dormir e sem falar.

Neste período de pausa entre o almoço e a CURA, o meu enorme quarto de dormir, era "Invadido" por estes amigos, embora fossem só uma meia dúzia dos mais selectos, mas como todos fumavam, quando dali saiam, era tanto o fumo, que eu tinha de abrir as janelas, para ele sair...

Cada um falava das suas coisas, das saudades das esposas e filhos e se contavam anedotas, quase sempre bem picantes...

Toda a outra malta se juntava numa sala de jogos no outro extremo do andar, a jogar as cartas ou o dominó.

Talvez, e não sei porquê, eu havia ficado no centro daqueles encontros mais ou menos ruidosos, mas também é certo de que era o maior quarto daquele sanatório, porque se havia curado o meu companheiro de quarto, o Isolino, e assim, eu estava com mais espaço disponível.


Foi na época da foto que encabeça esta crónica, que me entusiasmei em construir uma estação de rádio "pirata", muito pequena e sem conhecer nada de eletrônica, que a construi e pus a funcionar, mas os seus 2 ou 3 Watts, chegavam a quase todos os outros sanatorios.

Naquele tempo, nenhuma outra rádio lá chegava, e depois das CURAS, eu ainda tinha uma hora disponível, para irradiar o meu radio. Depois entrava a funcionar o Radio Polo Norte, também montado no Caramulo, por outro meu amigo, o Joaquim Seabra.

Como no inverno, todos andávamos de fortes capotes pretos, mais parecíamos uns pinguins e daí o ter dado o nome de Radio Clube dos Pinguins, (RCP) à estaçãozinha de rádio.

Como a energia eléctrica era fornecida por um grande gerador, à noite, a luz ficava tão fraca, que nenhuma telefonia conseguia tocar, mas como eu havia construído um elevador de tensão, já tinha energia para um rádio, e lá vinha aquela malta toda para o meu quarto, para ouvir as noticias, os discursos políticos, as rádio-novelas, a música e...fumar.

Como ele não tinha filhos, vivia com uma pena imensa das crianças doentes e internadas do SANATORIO INFANTIL, ali mesmo atrás da Ermida e que era controlado por freiras, até porque havia crianças de colo e todas cheias de saudade dos seus pais. Aquilo fazia mesmo pena !

Um dia, em que havia adquirido um pequeno projector de cinema de manivela, ele me perguntou: E se mandássemos vir uns filmes de desenhos animados, para entreter os miúdos?

Aquela ideia também me apaixonou e começámos a fazer peditórios destinados aquele fim, por todos os sanatorios, pelo que se conseguiu o dinheiro suficiente para mandar vir os filmes, e comprar uns pacotes de rebuçados, para entregar aos miúdos mais disciplinados...

Logo que chegavam os filmes, lá agarrava eu num tripé com o projector de 9,5mm, enquanto o João Pereira levava os filmes e os pacotes de rebuçados.

A criançada ficava louca de alegria e nós os dois também.

Depois de nos termos separado, porque ele se veio embora e curado, ainda lhe escrevi a dizer que estava a viver em Benavente, e ele me havia contado que estava a trabalhar nas medidas da Barragem do Alqueiva, em pleno Alentejo.

Não me lembro porquê, mas às tantas perdemos o contacto um do outro e ele até pensou que eu tivesse morrido.

Mas um dia em que um casal de Benavente, onde eu vivia, estava de férias no Alentejo, e no mesmo hotel do meu amigo, ele ouviu falar do meu nome e logo desejou fazer referência à minha pessoa, com ar muito contristado, por julgar que eu já não existisse, mas logo foi informado de que me conheciam perfeitamente e que já tinha casado com uma linda ribatejana e tinha 3 filhos !
De imediato me apareceu de visita, acompanhado da sua esposa, a D. Carlota, e tendo passado a viver em Samora Correia, a 6 Km de Benavente, agora empregado na Companhia das Lezirias.



E vivemos mais alguns anos, imensos fins de semana, até que ele começou a ter muita dificuldade de andar e vim a saber depois, que ele havia falecido de Parkison.

Entretanto, este tão grande amigo, de há mais de 50 anos, nunca mais esqueci e dele me recordo imensas vezes, com imensa saudade.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

AS MINHAS LINDAS "ALVAROZES "



O Sr. Agostinho, era o pai da minha linda tia Maria, e tinha sido emigrante nos EUA por muitos anos, trazendo de lá, já farto de trabalhar e ganhar algum, a sua filha, uma garota muito bonita e dócil, mais ou menos da idade da minha mãe.

Esta minha tia Maria, era um encanto de pessoa, sempre pronta a rir e até cantava muito bem, a acompanhar-se das músicas americanas que a sua grafonola tocava em discos de 78 rpm, sempre tendo o cuidado de lhe mudar as agulhas, para que os seus discos não se estragassem. Aquela grafonola, devia ser única, nos Ginetes e ela não deixava que mais ninguém lhe tocasse...

Ela teve dois filhos mais ou menos de seguida, o Eduardo (falecido no fim de 2008), e o Armando, o mais velho, era até da idade do meu irmão Carlos Mar. Quando eu nasci, já eles tinham uns 3 anos.

Só muito mais tarde, uns 20 anos depois, é que ela "emprenhou" , como se diz nos Açores, e até foi uma briga, porque meu tio Assis, seu marido, queria à viva força, que fosse um menina, mas naquele tempo, nunca se sabia o que dali viria daquela barriga, e minha mãe sempre lhe dizia, que isso de sexo, só a Deus caberia, mas meu tio logo ripostava , muito chateado, que ela nem pensasse em lhe parir, como por lá se dizia, outro rapaz...

Tinha que ser uma menina !

Toda a gente gozava com aquela mania de meu tio, mas o que é certo é que apareceu mais outro rapaz, o Alberto dos Reis Leça, hoje Vereador da Câmara Municipal de Ponta Delgada.



Esta linda senhora, havia nascido nos EUA e lá educada, pelo que falava fluentemente o inglês e o português que sempre falava com seu pai. Ela adorava música americana e até tinha de memória, as suas letras, sabendo lindamente cantá-las. Como ela tinha visto pessoalmente espectáculos ao vivo, até dançava




Mesmo, depois de velhinha, mantinha aquele ar doce e sorriso que tanto me havia encantado em toda a minha juventude.


Meu tio Assis, ficou tão aborrecido que até deixou de lhe falar por muito tempo...

Aquilo é que ele ficou mesmo chateado, porque a diferença de idade dos filhos já crescidos, para a daquele, mais parecia ser um neto... enquanto a minha mãe tinha dois rapazes e 3 garotas...

Este meu tio era uma pessoa muito calada e até, nunca me lembro de o ter visto sorrir... nem muito menos, dar uma gargalhada...

Embora tivesse duas espingardas, nunca o vi ir à caça, sendo uma de calibre 12 e uma outra linda, de dois canos, de 9mm , que eu adorava pegar ! Meu avô, que tinha imensa habilidade e treino de tiro, até me dizia que meu tio não tinha grande habilidade para aquilo...

Como todos os rapazes da família, tinham aprendido a língua inglesa, ele não teve dificuldade em conseguir, mais tarde, entrar para a Armada, até porque além do inglês, que ele havia aprendido com a minha avó, e a seu mãe Maria, genuinamente americana, e que falava fuentemente, também havia aprendido Morse, o que lhe era exigido para a sua profissão de Director Semafórico do seu observatório marítimo, ali muito perto do imponente Farol dos Ginetes, mais conhecido por Farol da Ferraria.

Daquele sítio, se abarcava todo o horizonte marítimo do Sul de S.Miguel e, quando era dia, e aparecia a léguas de distância, um navio qualquer de grande porte, ele tinha por obrigação comunicar com ele, para saber a sua nacionalidade, de onde vinha e para onde ia, além do que transportava.

Algumas vezes, até conseguia ajudar os navios, com pessoas que lá se encontravam doentes e podia preparar a entrada dos navios em Ponta Delgada, para assistência médica imediata.


Hoje, há os rádios, mas naquela época, ainda estava na sua infância, e só se podia comunicar a tão grandes distância, por meio de Morse por luz, ou com bandeirolas, uma em cada mão. Como ele ficava com as duas mãos ocupadas, tinha de memorizar, muito calado, os sinais que estava a receber pelo seu enorme óculo que estava seguro por um valente tripé.

Depois, dirigia-se para a sua chave de Morse, e comunicava para o seu Quartel General, o acontecido, alem de registar no seu livro diário.

Todos nós, os rapazes, quase todos da mesma idade, embora eu fosse o mais novo, frequentavamos a Escola Primária, enquanto as minhas irmãs ficavam em casa a brincar com as suas bonecas ou a estudar francês com a minha avó, ou a estudar música.

Aquele observatório do meu tio, ficava um bocado longe e tínhamos de ir a pé, mas aqui e ali, lá nos íamos alimentando de amoras silvestres e "rebuçados", além de bebermos água fresquinha, que brotava aqui e ali, das grotas sempre frescas.




Infelizmente, não possuo nenhuma fotografia do Observatorio onde trabalhava meu tio, mas aquilo era um largo cimentado e circular, tendo ao meio um enorme mastro de navio, por onde meu tio fazia içar certas bandeiras que estavam muito bem guardadas, e à vista, numa casinha pequena, logo seguida dum outro compartimento onde se encontrava a aparelhagem de medida, como higrómetros, barómetros, medidor da força do vento, termómetros. etc. etc. além duma secretária onde ele "clicava" em código Morse, por linha telefónica, todos os dados para a Capitania na cidade de Ponta Delgada.


Talvez que, devido aos horários da Armada, ele nem tinha tempo para sorrir, e sempre foi uma pessoa muito soturna. Mas havia alguns períodos em que não havia trabalho e já podíamos brincar por ali à volta ou/e a fazer-lhe perguntas.


Um dia, quando lhe perguntei o porquê de haver tantas "cordas" naquele mastro, ele sempre dizia que, em marinha, só havia cabos e que só havia duas cordas: a do sino e a do relógio...


Meu irmão Carlos Mar, é que não perdia toda aquela azáfama das transmissões do Morse e aquelas agitadas operações das transmissões com as bandeiras. Talvez por isso, muitos anos mais tarde, em Angola, em 1940, ele veio a construir o seu Observatório da Mulemba, muito ligado à NASA. Em 1976, foi assassinado por malvadez militar.
Meu primo Eduardo, estava mais entusiasmado com os faróis, o poder acompanhar os faroleiros até ao seu mais alto andar, onde estavam os sistemas de rotação dos espelhos, as fortissimas luzes, e a "corda" que os faroleiros tinham de carregar, com uma bruta manivela e muita força de braços. Esta "corda", não era mais do que um brutal peso que estava pendurado desde lá de cima, até ao rés-do-chão.

Fiquei muito orgulhoso, aqui ha poucos anos, quando o Almirante Duarte Lopes, radioamador CT1VV, me envia uma revista da Armada onde, na sub-capa, se mostrava a foto do Farol da Ferraria e se fazia a alusão a uma descoberta deste meu primo Eduardo Reis Bettencourt Leça, de um sistema electrico que tinha vindo resolver o trabalho da recarga da "corda" dos faróis.


Talvez por este motivo, ele tenha vindo a ser faroleiro em toda a sua vida: Mas, tal como todos os outros faroleiros, tinham de andar sempre a mudar de casa, à volta da ilha de S. Miguel, para dar assistência aos imensos faróis existentes, em que alguns estavam implantados em rochedos incríveis, com o Oceano Atlântico sempre a bater-lhes, o que só pessoas mesmo intrépidas podiam fazer, para transportar os pesadíssimos bidões de combustível em barco a remos, e retirá-los para os rochedos, ficando normalmente, completamente encharcados !



Aquilo é que era um ofício chato !!!!


Ele sabia que havia outros faroleiros fixos, mais graduados, onde podiam ter as suas famílias. Mas isso exigia uma preparação técnica que ele não possuia ainda: a electrónica.


Já perto do fim da sua vida, e a esposa com um cancro na cabeça, ele me pediu para lhe ensinar muitas coisas sobre electrónica, para poder fazer exame e subir na carreira, o que felizmente conseguiu, embora sua esposa falecesse pouco tempo depois.


Mas voltando um pouco atrás, aquele Sr. Agostinho, que era uma pessoa forte mas muito calada, quando o tempo chovia, ele se entretinha a responder por carta, aos seus amigos do EUA, e eu ficava extasiado a vê-lo escrever !


Aquilo era tão lindo de ver... até porque ele rodeava as letras maiúsculas, duns floriados muito belos e todas as letras eram escritas com imensa perfeição! Eu nunca havia visto uma pessoa escrever assim, e aquilo era lindo de ver!

Ele ali ficava na mesa da cozinha, enquanto a minha tia Maria ia fazendo os seus trabalhos domésticos e quando cozia pão de milho, sempre nos guardava uns pãezinhos de farinha de milho, com açúcar, porque sabia do quanto eu gostava deles.
Eu julgo que toda a casa tivesse sido feita por ele, e do lado de trás, havia um aumento para uma casa de banho e o lavadouro manual da roupa. Mas a sua casinha, até tinha sala e tudo muito limpo, mas era raro entrarmos nesta sala, não fossemos levar terra nos pés, lá para dentro...


Não sei porquê, nunca ouvi lá falar do que havia sido o seu trabalho nos EUA, mas uma coisa era certa, ele havia trazido uma data de ferramentas que tinha guardadas e muito bem fechadas, no sótão da sua casa, sítio onde dormiam os meus dois primos.

Ainda me lembro que no dia da matança do porco, a tia Maria lá nos metia a todos para dormir, o que dava sempre, um tremendo forrobodó, com aquela mistura de rapazes e meninas.


A sua casa era modesta e pequena, mas muito aconchegante, além de ter imensas coisas por ele construídas, pois era uma pessoa que estava sempre ocupada a semear, plantar, colher, guardar, a construir mobília, e até havia comprado uma terrinha, onde fazia a cultura de certos frutos e tabacos que depois, em casa e com as folhas bem secas, fazia um molhe bem apertado, como se fosse cortar couves para um caldo verde, e numa maquineta do tipo de corta-bacalhau, por ele construída, "migava" o seu tabaco, que enrolava nas mortalhas, para poder fumar.

Quando ele estava a fazer este trabalho, tinha de abrir o seu "esconderijo" das ferramentas, por onde eu podia espreitar as suas lindas ferramentas... todas muito bem arrumadinhas e limpas...


Mas quando ele tinha de fazer qualquer obra de carpintaria, ele vestia umas calças azuis, cheias de bolsos, e que eram a minha adoração! Ele dizia que se chamavam "over trousers", mas como aquela palavra era muito difícil de pronunciar, para mim, eu lhes chamava de "Alvarozes"...

Aquilo eram as calças que eu mais adoraria possuir, não só porque eram compridas, mas a minha mãe é que foi difícil de convencer... Mas um dia, tanto a chateei e beijei, que ela foi comprar ganga azul e lá me construiu as minhas adoradas "alvarozes", onde metia nas algibeiras, toda a tralha que necessitava para brincar, como um canivete para construir com um galho apropriado, em forma de "Y" , as muitas fisgas que ia construindo.


Talvez que o trabalho profissional do Sr Agostinho, nos EUA, fosse de muita exigência mecânica, e como nesta foto, talvez pudesse ser ele, com as suas "alvarozes", a mais de 100 metros de altura...
Hoje estas "alvarozes" são muito usadas pelas garotas na ilha da Madeira. Acho uma certa graça, que após passado tanto tempo, a TVI tivesse ido fazer uma telenovela intitulada "Flor do Mar", a esta ilha, onde tudo anda à volta duma garota rica, que emprenhou dum rapaz pobre, sempre vestido de "alvarozes", e que foi abandonar a sua filhinha, à porta da casa do seu pai.

Como o Sr. Agostinho sempre tinha sido mecânico de qualquer coisa, nunca me lembro de o ter visto naquela casa cor-de-rosa, onde eu nasci e me criei, até ter de sair de S.Miguel, para estudar no Continente, em Lisboa, embora a sua alegre casinha estivesse ali a menos de 100 metros de distância.

Hoje tenho pena dele não ter sido mais acarinhado e até, devido ao seu feitio acanhado e reservado, nunca o vi junto das pessoas que todos os anos visitavam a casa cor-de-rosa.

Era gente "fina demais", para seu gosto...