sexta-feira, 4 de julho de 2008

NÃO ME DEIXES SOFRER....

Desde que conheci a minha adorada esposa Alice Rosa dos Santos, há mais de 53 anos, que vim a saber que ela sofria de dores de cabeça mais ou menos intensas, de tempos a tempos, e a medicina nunca encontrava uma explicação, pelo que os analgésicos, era do que ela se enchia, nessas alturas...

Depois tinha períodos de acalmia e às tantas umas cólicas tremendas de rins, tendo-se descoberto que ainda havia mais duas pedras num rim e que, provavelmente, mais cedo ou mais tarde, lhe iriam dar enorme sofrimento...
Fora aquelas dores de cabeça, e o saber que mais dia, menos dia, iria sofrer de outra cólica de rins, até parecia uma pessoa muito saudável e alegre, sorrindo para toda a gente, duma forma muito franca e simpática.

Depois do rocambolesco nascimento do nosso primeiro filho, que descrevi em "Deixa-me morrer...por favor", e quando já existia até o nosso segundo filho, a Antonieta, ela vem a ter a malvada e terrível cólica renal de que já estávamos à espera e de tanto sofrer, horas e horas, até dizia que preferia as dores dum parto, àquelas dores que nunca se sabia quando iriam terminar..., pois não havia analgésico que resultasse... e eu ali a vê-la penar, sem poder fazer mais nada, horas e horas, até ser expulsa aquela malvada pedrinha com o formato de um feijão, mas cheio de bicos, pelo que a sua passagem por tantos lados estreitos, a deixaram muito combalida e até ferida, rasgada toda por dentro ! !!!

Mas ela era uma mulher de armas e embora sabendo que ainda havia outra pedra para sair, e nunca se saberia quando, lá foi vivendo normalmente e sempre muito activa, embora como boa dona de casa e mãe.
Entretanto aparece o nosso terceiro e último filho, um ano depois, o Carlos, criança exageradamente activa e sempre desejando sair de casa, para o que sempre inventava forma de abrir a porta e desaparecer das nossas vistas, o que nos obrigava a andar sempre à sua procura...
Aquilo é que o rapazinho sentia uma necessidade de liberdade ! Ele sabia que ia levar uns sopapos, mas não lhe servia de emenda...

Mas havia uma coisa que continuava a aparecer de tempos a tempos, as tais dores violentas de cabeça, em que só queria ficar isolada e às escuras, horas e horas, e lá se ia tentando tratar à custa de mais analgésicos, pelo que a nossa gaveta dos medicamentos, já estava cheia deles, sempre à espera que fosse descoberto aquele que melhor efeito tivesse, porque segundo diziam os médicos, só ela saberia, pelas tentativas, descobrir os mais recomendados...
Aquilo muito me intrigava, até porque e felizmente, até hoje, ainda não sei o que são dores de cabeça fortes, mas alguma coisa devia ela ter em qualquer outra parte do seu corpo e que pudesse despoletar aquelas tremendas dores...
Também era verdade, que ela sempre tinha mostrado muita prisão de ventre, de dias e já sabia que certas comidas lhe originavam as dores de cabeça, como eram as sopas de feijão, talvez pelos gases que se geram...
Mas um dia, ela me veio dizer que estava a perder sangue pelos intestinos, e aí entrei em órbita, pois embora sabendo que as mulheres têm os seus períodos de saúde com alguma hemorragia mensal, mas por ali é que eu não estava mesmo nada à espera e corri à sua médica que logo mandou fazer um clister opaco, manobra extremamente difícil, porque o bário não entrava, nem por nada! Ou seja o que havia entrado, nem dava para fazer um raio-x suficientemente informativo.
O próprio radiologista, estava espantado com o que estava a acontecer...
Aquele aparecimento de algum sangue nas fezes, seria bem evidente de haver algo grave nos seus intestinos e que, por mais laxantes que experimentasse, não resultavam, ou até pioravam.
Tinha de haver outra explicação !

Nos dias de hoje, ela já há muito que teria feito uma Ressonância Magnética, ou uma Ecografia, ou uma TAC, e talvez tivesse podido ser operada a tempo...

Um dia fui visitar a sua médica, uma jovem, e ela, depois de ter estado ao telefone com um médico operador do Hospital de Vila Franca de Xira, não conseguiu esconder umas lágrimas que lhe saltaram dos olhos e, perante grande comoção, me entregou a papelada necessária para levar minha mulher, urgentemente ao Hospital de Vila Franca, e depois dela ser analisada, dolorosamente, por uma equipa médica, foi encaminhada de imediato para a sala de operações.

Aquilo tinha de ser mesmo grave, fiquei eu a pensar, enquanto deambulava pelo hospital, à espera de noticias, até que um médico me vem dizer que ela tinha sido operada e "limpa" e que tinha de lá ficar.
E eu a pensar naquele "limpa" ! Mas limpa de quê ? Teriam retirado o tumor ?

E como eu ali não podia fazer mais nada, saí do hospital e me assentei sozinho num banco de jardim, chorando como uma criança. pela primeira vez sozinho e completamente destroçado!
Nessa noite, sozinho na cama e na casa, eu nem consegui dormir e só esperando pelo dia seguinte e hora das visitas, para a voltar a ver, falar e beijar.
Quando desejei saber mais algum pormenor, todos fugiam de me esclarecer correctamente, até que vim a saber que ela tinha um grande tumor no cólon transverso, e lhe haviam colocado um ânus artificial, aquele saco, no extremo superior do cólon ascendente, ali junto às suas costelas, pendurado na barriga.

Mas que pouca sorte a dela e da minha !!!

Aquela hora da visita era torturante, porque vinham os amigos e amigas que rodeavam a sua cama, tudo num grande falatório, enquanto eu ali ficava ao lado, assentado numa cadeira, à espera de uns segundos para a ver.
Foi logo nessa altura que desenhei uma caricatura dum homem triste a abandonado, sem sequer poder ver a esposa tão enferma.
Mal sabia eu que essa caricatura, e mais 40 que se seguiram, havia sido caçada por um enfermeiro e havia corrido a mostrar em todo o Hospital, até à sua Gerência, a ponto de se ter alterado profundamente a hora das visitas e que só poderia entrar uma pessoa de cada vez, e que quando saísse, entregaria a senha a uma outra...
Nessas caricaturas, eu gozava com toda a gente, em especial com os médicos, pois havendo proibição de fumar dentro do hospital, quase todos fumavam...

Depois de umas semanas de visitas, o médico-chefe, me disse que a poderia transportar para casa, porque Vila Franca estava em festa e havia demasiado barulho e confusão... e assim a trouxe, sendo informado do que teria de fazer para a substituição do saco, sua desinfecção e limpeza diária, porque nada mais se poderia fazer...

Entretanto minha mulher já tinha visto outros doentes em estado terminal e me pediu simplesmente, " não me deixes sofrer"... como se eu, um pobre diabo de 28 anos, tivesse alguma coisa que pudesse fazer, para não a deixar sofrer...
Felizmente que ela não estava a sofrer, nem tinha as tais terríveis dores de cabeça, pelo que eu me tive de habituar a toda a lide de casa, porque ela não queria ter por perto, mais ninguém, a não ser eu.
Eu entendi aquele seu desejo, até porque se tinha de descobrir exageradamente e a isso não se desejava expor...
Assim, se foi passando o tempo, com ela cada vez mais fraca, e a ter de a abandonar todos os dias, uns minutos, para ir buscar comida e fazer alguma para ela, tendo aprendido a fazer papas de Maizena, que era ainda do que mais ela apreciava, mas onde ela sempre encontrava uns grumos e me obrigava a ir fazer outras...
Depois era o lavar de toda a roupa e ir passando a ferro, mesmo ali numa marquise a seu lado, enquanto ela, muito calada, ia apreciando e até um dia me disse: "Já vejo que te estás a salvar sozinho."
Ela nunca me disse que sabia do tumor que tinha, nem do medo de morrer por causa dele, só que não queria sofrer...
Um médico amigo, Dr. Tomé, infelizmente já falecido, a quem perguntei o que estaria nas minhas mãos, para não a deixar sofrer, quando chegassem as dores... ele só me respondeu que lhe desse a injecção de Cocaina, quando ela pedisse, mas que não estranhasse, porque ela se iria habituar ao bem-estar por elas provocado e me iria estar sempre a pedi-la, mal acordasse e sentisse mal-estar...

Eu já sabia dar injecções, desde miúdo, de tanto as ver meu avô dar, e enfiava as agulhas nas nádegas das bonecas das minhas irmãs, que até achavam graça... mas ir espetar a minha própria esposa, é que me doía e bem, fazendo o melhor para que ela nem as picadelas sentisse, sendo muito rápido a picar e muito lento a injectar, além de medir com muito cuidado, o sítio de dá-las, para não apanhar o nervo ciático.

Como eu nada estava a fazer ao seu lado, enquanto ela dormia, resolvi agarrar uma câmara de TV e a coloquei num tripé, aos pés da sua cama e do quarto ao lado, eu podia ver se ela acordava e de mim precisasse.
Mas ela deu por isso, porque mal se movia, eu logo aparecia e isso a levou a perguntar-me: "Como é que sabias que eu necessitava de fazer xixi ?" , e eu lhe fiz ver que estava sempre com o olho nela, pela televisão.
Mas um dia, mais morto que vivo, deixei-me adormecer, mas algo havia acontecido, com um ruído estranho que havia ouvido e na TV, ela não estava lá! Num salto, vou encontrá-la estatelada no chão, sem se poder mover, dizendo-me que só queria ir ao bacio, mas tinha ido parar ao chão...
Com grande dificuldade, lá a consegui levar para o bacio e depois para a cama.
Felizmente que nada mais aconteceu.

Como ela gostava muito de se sentir lavada, penteada e perfumada, eu lá fazia o que ela me ia dizendo e um dia me disse: "O que seria de mim, sem ti...?"
Mas já perto do seu fim, ela nem queria que fosse eu a dar-lhe o comer e protestava da minha boa vontade, sem se aperceber de que já nem conseguia acertar na sua boca e tudo caía na cama, o que me obrigava a ter de ir substituir toda a roupa suja.

Passados poucos dias, e eram 3 da manhã, e eu estava ali ao seu lado a tentar dormir um pouco, porque ela queria mais uma injecção de duas em duas horas, mal acordava, quando eu notei que ela já não me conhecia nem a vista se movia, e parecia de vidro, e mal sentia o seu pulso.
Seria que eu estaria a fazer-lhe uma eutanásia sem saber ?
E ali fiquei assentado ao seu lado, a pensar que teria de dar a triste noticia aos meus filhos, que estavam longe, mas isso só lhes iria por em pânico, e de nada serviria, pois se ela já nem me reconhecia, ainda pior aos filhos.
Assim aguardei até de manhã, para lhes telefonar e passado pouco tempo, ali estavam eles a verem o seu calmo apagamento sem um "ai". Eu até sentia uma certa "felicidade" de a ter ajudado a morrer sem sofrer.
Eram 10 horas da manhã, quando o seu coração parou e começou a esfriar.
Era o dia 27 de Novembro de 1991.
Como o caixão não conseguia nem entrar nem sair do quarto para o corredor que estava em frente, o meu filho mais velho, num acto heróico, agarrou no cadáver da sua mãe e levou-o ao colo, até ao sítio onde se pudesse colocá-lo no caixão, a uns 15 metros de distância.
Posted by Picasa

Tenho pena se esta crónica fez sofrer um pouco o leitor amigo, mas talvez tenha compreendido que em todas as situações da vida, sempre há uma altura em que podemos mostrar o nosso grande amor por alguém.