Aquele lugar estava vazio há muito tempo, e havia muitas centenas de processos sobre a minha secretária, para catalogar, um a um, ler um a um e resumir o seu conteúdo num enorme livro, para depois de registados, serem entregues ao Arquivo. Aquilo era um trabalho dos diabos, porque havia relatórios imensos sobre os mais diversos assuntos e tive de lê-los todos, para ficar ciente do que cada um tratava e em meia dúzia de linhas, tomar as respectivas notas no "big book" ! Certamente que ninguém queria aquele lugar, mas como sempre gostei de historiar, aquilo até foi divertido e passados uns meses, a secretária estava vazia !
Todos os dias eu tinha de fazer a travessia do Rio Tejo, de Lisboa para o Alfeite, numa vedeta da Administração, em companhia de mais altos funcionários, incluindo, como não podia deixar de ser, o Eng. Vargas Moniz.
NOTA: Se o leitor estiver interessado, poderá, via GOOGLE, escrever "Maior açoriano de sempre", onde entre centenas de pessoas ilustres açorianas, encontrar, por ordem alfabética, o Eng. Rogério Vargas Moniz, que chegou a ser Secretário de Estado da Indústria. Ao abordar este enorme lista, chega a parecer impossível que tantas e tão interessantes figuras das artes, medicina, indústria, poesia, pintura, política, etc., tenham nascido nos Açores ! Aí, valentes açorianos !
Vargas Moniz era um destes rapazotes, de 10 ou 11 anos, em 1912, quando viviam na freguesia dos Ginetes em S.Miguel, aquela formosa e lindíssima ilha de 750 Km/2, e filhos do farmacêutico Vargas Moniz que lá vivia.
Dada a necessidade do fabrico manual dos medicamentos, naquele tempo, este farmacêutico tinha de estar em contacto diário com meu avô, Dr. Carlos Leça, também lá residente nos Ginetes, e eram amigos íntimos da minha família.
Depois dos seus estudos, Rogério Vargas Moniz veio estudar engenharia naval para o Continente e acaba por ir dirigir as instalações marítimas do Arsenal do Alfeite, por volta de 1935.
Suponho que ele deve ser avô do actual Administrador Geral da TVI, José Eduardo Moniz, mais um açoriano de classe ímpar.
Foi nesta época que um valente ciclone atingiu Lisboa, conforme se pode ler dum escrito encontrado na NET, e onde se conta que se afundaram mais de 100 fragatas...e morrido mais de 20 pessoas... Eu nem sabia que havia 100 fragatas em Portugal...e, se calhar, o articulista queria dizer, barcos de pesca...:
« Estava a desencadear-se um dos mais violentos temporais de que há memória no nosso país. A pressão atmosférica desceu a 952.1 milibares e, agora sim, percebe-se que o valor lido pelos incompreendidos estudantes, não era mais do que o prenúncio da tempestade. Uma tempestade que teve rajadas de 200 km/hora e em que morreram mais de duas centenas de pessoas pelo país fora. Foram abatidas milhares e milhares de árvores. Lisboa foi uma cidade muito sacrificada. Inúmeros prédios danificados. Perderam-se mais de 100 fragatas do Tejo. Um hidroavião Clipper afundou-se na doca de Cabo Ruivo. A nau Portugal , virou-se. E, até o Infante D. Henrique, essa figura de proa do Padrão dos Descobrimentos, ainda em estafe, perdeu-se no Tejo. Curiosamente, nesse dia 15 de Fevereiro, estava previsto o lançamento da quilha dum petroleiro para a Marinha que viria a chamar-se S. Brás. A cerimónia foi adiada. »
Foi nesta altura que foi empreendida a construção jamais feita em Portugal, do navio petroleiro S.Brás, aquele monstro com uns 200 metros de comprimento, que havia de ser lançado à água em 1942. Mas antes do seu lançamento, se queríamos encontrar o Eng. Vargas Moniz, ele sempre estava de fato de macaco esverdeado, por entre os operários, ora acompanhando a construção da sua grande obra, a subir e descer as perigosas escadas de ferro dentro do navio, ora a saltar de oficina em oficina, a acompanhar pessoalmente todos os trabalhos. Mas o S.Brás, como todas as grandes obras, também havia de sofrer os seus revezes... e só homens do gabarito de Vargas Moniz, estavam à altura das grandes e complicadas soluções !
Costuma o povo dizer que "Grandes naus, grandes tormentas..."
O NAVIO ESTAVA AZARADO...
No dia do seu "bota abaixo", era um dia especialmente festivo para Portugal e no estaleiro onde o imponente e majestoso navio se encontrava, havia milhares de pessoas com as mais altas individualidades do Estado, incluindo o Presidente da República e o Primeiro Ministro Salazar, Almirantes e mais Almirantes, todas de "ponto em branco" e a garrafa de champanhe pronta a ser largada de encontro à proa daquele "monstro", enquanto à ré e aos lados do navio, estavam agarrados por fortíssimos cabos, vários enormes rebocadores, prontos a, depois do seu lançamento, o deslocarem para o meio do Rio Tejo, e fazerem descer as suas enormes âncoras.
Assim, com muitos foguetes à mistura, e banda de música, é dada ordem do lançamento, até porque se havia esperado pela maré alta, mas largada a garrafa de champanhe, que se partiu em mil bocados, perante a entusiástica alegria e muitas palmas de toda a gente, o navio gemeu de proa a popa, assentou-se no seu berço inclinado, de lançamento, mas só escorregou um metro e dali é que ele não queria sair... que desilusão e grande bronca !
Era um momento de pânico e no meio daquela tremenda barafunda, o Eng. Vargas Moniz, sempre no seu fato de macaco, corria de um lado para o outro, dando ordens para todos os operários envolvidos no projecto e passados poucos minutos, foram postos em funcionamento uns fortíssimos macacos hidráulicos de imensas toneladas, que já estavam preparados para empurrar o navio, mandada dar a força toda aos rebocadores, mas o "malvado navio", só escorregou mais uns metros e ficou parado novamente ! Havia que urgentemente substituir os macacos, por uns mais potentes, mas o tempo já estava a escassear e mesmo, depois de aplicados os novos macacos e dada toda a pressão... o raio do navio só escorregou mais uns metros e parou ! Até dava vontade de chorar...
Até parecia que o navio não queria tomar banho ! Aquilo estava um "parto difícil" !
Assim, e porque já toda a gente estava farta de esperar e o nosso Eng. Vargas Moniz a deitar fumo pela cabeça...lá se foi toda a malta embora, até porque a maré já estava a baixar e não estava propícia, e havia que esperar pelo dia seguinte, por nova maré cheia.
Essa noite deve ter sido a mais preocupante para toda a gente envolvida no projecto, até porque parte do navio estava em terra e outra na água, pelo que havia o perigo do enorme navio se partir ao meio... ou pelo menos ficar muito amolgado no fundo... no final do inclinado berço escorregadio de lançamento.
E foi já, sem pompa nem circunstância, que na volta da maré cheia, e mais rebocadores e mais macacos, fosse possível por o majestoso petroleiro a flutuar. Assim, quando entrei ao serviço, no dia seguinte, já o navio "tinha dado à luz" e se encontrava ancorado no meio do Tejo.
Um inquérito feito de seguida, veio a provar que a gordura (sebo) usada sobre o berço, tinha sido mal fabricada, mas disso não tinha qualquer culpa o nosso Eng. Vargas Moniz, nem ninguém do Arsenal do Alfeite, até porque nunca tinha havido antes, problemas com o sebo... Tinha sido uma grande e grave bronca !
Depois de uma data de meses, o S. Brás lá começou a fazer as suas viagens para Curaçau e Aruba, e depois a Barém, Porto Artur e Saint Peter, tendo passado pelos canais do Suez e do Panamá, para trazer o petróleo bruto que se iria refinar. Mas, em 1970, com a guerra em África, o nosso governo decidiu transformá-lo em navio de guerra, colocando-lhe duas valentes peças de artilharia, uma à proa e outra à ré, e parque de estacionamento de helicópteros.
Mas o "azarado" navio logo na sua primeira viagem com tropa a bordo, mal saiu da barra em Lisboa, teve uma explosão a bordo e teve de ser rebocado para o Tejo, onde esteve fundeado para reparação, ali em frente a Cascais, com as famílias da tropa convencidas de que já a malta estaria toda em alto mar...a caminho de Angola...
Depois de reparado, ele aí vai mar a dentro, mas perto de Cabo Verde, dá-se outra explosão a bordo, na casa das máquinas, que danificou os comandos hidráulicos de direcção e o navio foi levado para a Ilha da Madeira, com os pesadíssimos comandos manuais... a enorme roda de leme...operada por pessoal da tropa, que estava a bordo e se prestou para ajudar e, constantemente controlado pelo pessoal da Marinha.
Desta rocambolesca viagem, fazem fé uns interessantes depoimentos dum oficial do exército que ia a bordo, num Site da Internet, mas que esqueci o seu endereço, com muita pena...
Do petroleiro S. Brás, há muito que não se ouve falar nem sei do seu destino...Será que ainda está "vivo" ?
Nota especial para Maria da Graça Vargas Moniz.
Sem comentários:
Enviar um comentário