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Maria Taramela
18??/19??
Assim que lhe chegou a notícia de que havia no correio (uma taberna e mercearia da aldeia) uma carta vinda da frente de combate, Ti Taramela abalou aos gritos, arrastando com ela a vizinhança do Covão.
Vivia-se o drama atroz de quem não recebia há muitos meses notícias do soldado que, algures em França devia estar a bater-se numa guerra que ceifou 8 milhões de vidas e fez 21 milhões de feridos.
Ti Zé Ferreiro, tolhido pelo reumático, amaldiçoava as pernas, agarrado a um pau e, de coração apertado a bater forte e descompassado, esmagado pela incerteza murmurava :
E cria a gente um filho para isto…..
De facto desde que o Armando se foi, nunca mais teve um segundo de sossego e não foram poucas as vezes que as lágrimas rolaram ao lembrar o mocetão com quem trabalhava no derrube de pinheiros, visão que o perturbava ferozmente.
Entretanto, com a mercearia invadida, a dona, dando-se ares de importante, mandou silenciar a gritaria. De olhos febris, rostos lívidos e soltando profundos suspiros, a multidão preparava-se para o pior.
A da mercearia, para mais se pôr em evidência, subiu a uma cadeira e, dando mostras de querer um acto solene, elevou a voz.
- Esta carta vem de França e é do Armando..!
Num ápice desfizeram-se as tensões…Ti Taramela, elevando as mãos aos céus, possuída de grande exaltação, ajoelhou e agradeceu a Deus… Ai o meu rico filho….! E voltando-se para a Felizmina:
Anda rapariga…ainda tens namorado !
Esta, trémula e chorosa adiantou-se pegando na carta sem saber o que dizer. Ti Taramela, com ar decidido, deu ordens:
-Ala pró Moinho de Vento ! Vamos à Cremilde que ela é que sabe ler bem…!
E lá foi o tropel, ladeira acima , desejoso de penetrar no conteúdo da carta. Ti Cremilde apanhada de surpresa, foi sentando parte do pessoal à volta da lareira nos poucos tropeços de que dispunha. Procurando os óculos na teiga, limpou as lentes com os dedos sujos do trabalho dando início à leitura.
Querida Felizmina
Hades ter estranhado ê nã escrever á mais tempo mas nã foi por falta de saúde graças a Deus. Tenho andado muito triste e com muitas soidades de todos vocês. Deus queira que estejam todos rijos e valentes. Estou prisioneiro dos alemões.....íamos numa patrulha e a gente nem sabe como foi…de repente fomos cercados, tiraram-nos as espingardas e encostaram as baionetas às nossas barrigas…com muitos gritos e levaram a gente para um campo de concentração, Estamos a ser bem tratados mas o rancho é só batatas. Ninguém os entende….é uma fala muito arranhada. Diz-se aqui que o primeiro dos nossos a morrer foi um rapaz da Barquinha chamado António Gonçalves Curado. Dá cumprimentos a toda a gente e diz ao meu pai e à minha mãe que estou bem. Para ti um abraço e muitas soidades do que te estima muito.
Armando
Chegados ao final, Ti Cremilde tirou os óculos e fez-se silêncio entrecortado por alguns suspiros. Ti Taramela, mostrando desapontamento, desabafou:
- Ó Cremilde, tu nã leste bem a carta…
Esta, que até tinha feito uma leitura lenta e silabada, num esforço para que os circunstantes tivessem uma boa compreensão da essência da missiva, sentiu-se ferida e contestou
- Mas então, não li bem porquê ..?
Ti Taramela, convicta da razão que lhe assistia pegou numa saruga e apontando os pontos finais da carta resmungou :
- Tu não lestes estes beijos….
Ti Cremilde, nem pela cabeça lhe passara que alguém codificasse beijos com pontos finais e virando-se para a Felizmina, a namorada.
- Olha rapariga, de hoje em diante cada ponto final passa valer cem beijos…e se cá voltares aumento pra mil…. e agora.. rua…cada um à sua vida ..!
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