Mais uma vez, tenho o prazer de publicar mais um artigo do já conhecido Prof. Vitalino Martinho, e mais uma vez também, dedicando os seus agradáveis comentários, a uma pessoa da sua terra natal, o Espinehiro, no Ribatejo. A sua forma muito peculiar de descrever as pessoas, encanta qualquer leitor, mesmo dos mais exigentes.
António do Vale Soares
1902-1964
Conhecido na gíria popular por António Gargola, este circunspecto espinheirense parece espelhar no rosto um passado em que a felicidade não cavou traços indicativos duma vivência descontraída e feliz.
A boca forçosamente cerrada traduz a introversão de quem está indisponível para diálogos com um mundo desafecto e o cenho fechado e sombrio parece traduzir um ar de desconfiança e expectativa , em permanente atitude de autodefesa .
De facto, pelo retrato do António adivinha-se o drama familiar em que esteve envolvido, quando a mãe, Ti Rosa, faleceu com 35 anos, deixando 5 filhos indefesos a quem não foi possível prodigalizar os carinhos que fazem a alegria e a felicidade das crianças.
António emerge ,assim para a vida, sem os beijos e as carícias maternais tão importantes para o desenvolvimento afectivo e formação do carácter que definem a linha que norteia a existência e justifica os comportamentos necessários para uma boa integração social.
Diz-se que , quando a vida é madrasta, o enteado move-se na indecisão, sempre de pé atrás, numa recusa constante de se ver confrontado com surpresas desagradáveis.
São estas pessoas desvalidas e despeitadas que reagem perante os poderes instituídos contra os quais estão em permanente contradição por sentirem ter sido abandonadas nos transes mais difíceis da sua existência.
António confirma a proposição com episódios de constante resistência às leis instituídas. Sem ter qualquer conhecimento do direito romano, para ele a caça era mesmo res nullius, isto é, não era de ninguém , por isso usando furões e armadilhas, assessorado pelo Manuel Caldas, dizimava coelhos e lebres em profusão.
A G.N.R de Alcanena informada e, por certo pressionada , moveu perseguição tenaz ao infractor. Várias vezes veio ao Espinheiro mas sem resultado porque o ruído dum motor ou a vista duma farda desencadeava tal alarme que todas as portas se fechavam e as ruas ficavam desertas. Sempre o António Gargola se escapava como enguia escorregadia entre os dedos.
Perante o insucesso, a Guarda não desistiu e pôs em acção uma estratégia maduramente pensada. Ao invés de entrar no Espinheiro pela estrada que normalmente utilizava , vinda de Alcanena , iria pelo lado oposto, na convicção de que entrando de surpresa no Espinheiro teria êxito na captura.. Assim, passou pelos Amiais de Cima , por Abrã e à saída desta localidade ,no sentido que levava ,encontrou um homem com uma volumosa saca às costas , levando pela mão uma criança . Estabeleceu-se o diálogo:
- Oiça lá …você vai para o Espinheiro ? Aproveite que nós oferecemos uma boleia…
-Agradeço muito…..mais pela menina que por mim…o raio das batatas pesam como chumbo….!
Acomodados ,prosseguiram a viagem. Um dos guardas , ao passarem na Várzea observou :
-…Vocês têm aqui uma bela zona de caça….
- Pois temos mas en nas (quando) as putas sendo muitas tiram o ganho umas às outras….
- O que é que você quer dizer com isso ?
-Atão, quero dezer que há muita gente a dar cabo dela e nã calha a cada cão seu osso….
- Você conhece lá um gajo chamado Atoino Gargola ? volve o guarda.
-Se conheço….Esse malandro é dos piores…Só ele tem alguns cinco furões…!
- Você é capaz de nos ensinar onde é que ele mora ?
- Sim senhor…é mesmo ao pé de mim…
Passados minutos estavam subindo uma rampa, já dentro da povoação, quando o Gargola, em voz baixa, ordenou que parassem:
-O gajo mora naquela casa ao lado do velho que tá sentado naquela soleira. Deixem-me aqui pra ele não desconfiar de mim….
E sumiu no labirinto aldeão com as batatas e a miúda
Vai a patrulha junto do ancião e pergunta:
- O senhor, por acaso, viu por aqui um gajo chamado António Gargola ?
- Vi sim senhor, é aquele que ali em baixo se apeou do vosso jeep…
Entreolharam-se os guardas e num sentimento de grande frustração comentaram entre si : - e nós que tivemos o pássaro na mão…!
Deste episódio testemunhado pela filha Silvina que era então a criança acompanhante, ressalta a argúcia , a calma , a inteligência e o calculismo com que o António resolveu a situação, nunca se deixando apanhar até que um veículo o matou em Santarém, selando a sua vida com um epílogo triste e imerecido .
A sua voz grave e sonora extinguiu-se, a coragem com que enfrentou os revezes e a verticalidade com que defendeu os seus princípios pela força física e pela perspicácia, contra o isolamento e o ostracismo , foram os ingredientes com que justificou a máxima de 2000 anos: “ INOPI NULLUS AMICUS” ( o pobre não tem amigos ) .Nem parente, pode o leitor acrescentar….
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