segunda-feira, 14 de setembro de 2009

E LEVEI A VIDA A BRINCAR (ll)











Crónica nº.108
Setembro 2009
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" E LEVEI A VIDA A BRINCAR " (ll)


Há pouco tempo, li um pensamento chinês que dizia:

« Se ouvir, esqueço, mas se vir, nunca mais esqueço » (Confúcio)
Até chegar à idade da imagem com que inicio esta crónica, muito se passou na minha vida, e desde muito criança, e a assistir a coisas sempre interessantes, pelo que ficaram retidas na minha memória, para sempre !
Ainda estava antes da Escola Primária, e por isso entre os 5 e os 6 anos, e porque meu avô, já com mais de 60 anos, me deixava estar junto dele, quando ele "brincava" com muitas coisas, eu fiquei a pensar que ele devia ser um bom brincalhão...
Ele era médico, mas possuía uma habilidade imensa, para muitas profissões e no sótão da sua casa, onde eu havia nascido, em 1927, de que já tenho falado imensas vezes, como " A CASA COR DE ROSA", havia milhões de coisas interessantes, porque ele sempre tinha uma paixão entre mãos e, podia adquirir as ferramentas apropriadas para cada trabalho.

Aquilo estava tudo guardado no sótão, fechado à chave, mas de tempos a tempos ele abria aquela sala misteriosa, que eu tanto adorava visitar.

Ele não era uma pessoa muito faladora, talvez enjoado por me ouvir a perguntar constantemente, para que era aquilo...como aquilo funcionava, como se chamava, tantos porquês que talvez ele tivesse dificuldade em responder, porque eu só tinha 6 anos, e ele devia sentir que eu era curioso demais. Assim, preferia ir fazendo as coisas, sem botar "faladura".

Naquela enorme sala, que se tornava muito baixa, por causa da inclinação do telhado, lá para os cantos, aquilo estava cheio de tralha e era impossível lá ir alguém, a menos que levasse luz de uma lanterna eléctrica, mas eram tantas as aranhas, e suas teias, que aquilo até metia medo...

Mas eu nem me lembro de tudo o que lá existia, embora me recorde de ver umas caixas com sacos pequenos e cheios de pós brancos, que mais tarde vim a saber que eram produtos químicos para gerar fogo de artifício ! Aquilo é que meu avô era um brincalhão !!!
Mas me recordo de ter encontrado uma máquina para moer café e tinha duas rodas em ferro, e ali estava abandonada por já não moer bem.
De imediato pensei a fazer uma MONOCICLETA, ou seja, na ponta dum pau de vassoura, apliquei duas tábuas à laia de "garfo" onde coloquei uma roda.
Mais ou menos a meio, coloquei atravessado, um pau, onde podia agarrar. Depois era só correr com aquilo e guiar a roda para as curvas.
Aquilo até era engraçado, pois eu ficava inclinado para a frente, e podia correr á vontade sem me cansar tanto...
Sim, porque não havia dinheiro para uma bicicleta... e sempre era mais um brinquedo...
Mais tarde um pouco, construi uma BICICLETA, usando um pau em ângulo recto, onde me escanchava e apertava as pernas, e numa rampa qualquer, eu me conseguia deixar correr, bem equilibrado... Claro que não tinha pedais nem corrente, nem onde por os pés , nem rodas dentadas, porque bicicleta de fábrica, era só para ricos...
Havia naquele sótão, uma armação em madeira, com uma dúzia de tabuleiros, com milhares de letras metálicas, e que era uma máquina de imprensa, onde eu um dia aprendi a imprimir o papel para as receitas com o nome de meu avô, papel de cartas e envelopes, para ele e para a família, e aqui a podemos ver, muitos anos depois, quando na RARET, estava a imprimir fotos no nosso Boletim Técnico RARET, e porque havia uns pingos de chuva, de tempos a tempos, no inverno, o meu chefe de nome Fernando Calhau, que era muito brincalhão também, foi procurar um guarda-chuva para ficar "melhor na fotografia"...

Meu avô me havia deixado por herança a sua máquina de impressão, por ter sido o único dos seus 7 netos, que se havia mostrado interessado a manejá-la.
Aquilo era um tanto complicado, porque havia que compor o escrito, usando as letras que desejávamos, e adicionando os espaços. Isto era feito numa peça em chapa de aço e dobrada em "L", em que se apertavam os conjuntos de letras e se amarravam fortemente. Este conjunto de letras, de maior e menor tamanho, era colocado com muito cuidado, numa moldura em latão, que levava uns enchimentos em madeira e uns parafusos laterais seguravam todas as letras, para serem agarradas à máquina de impressão.
Mas havia depois, que colocar sobre o Prato circular da tintagem, que era em aço, uma certa quantidade de tinta espeça e se tinha de a espalhar muito bem, em todos os sentidos, com um rolo de borracha, para que o Prato ficasse todo igualmente tintado, com uma fina camada de tinta.
Mas antes disso, já se haviam feito os rolos da tintagem, com gelatina e mel, nuns tubos metálicos, (as formas), que já levavam no meio, uns varões de aço, onde se haviam enrolado uns cordéis, onde a gelatina se iria agarrar, mas deixando uns roletes de aço, para que eles ficassem perfeitamente centrados, e eu a prestar muita atenção...
Uma vez endurecida a gelatina com mel, os dois tambores eram colocados na máquina, ainda sem a moldura com as letras, e se andava para cima e para baixo com a alavanca, tantas vezes quanto necessário, até que estes dois rolos agarrassem a tinta que ia sendo "roubada" do dito Prato.
Este Prato só podia rodar para um lado, por uma unha metálica que por baixo dele, o fazia rodar uns 30 ou 40 graus, que cada vez que o braço vinha abaixo e fazia um prelimpimpim, ao levantar o braço.
Um prato quadrado, onde se agarravam uma data de folhas de papel, umas 12, à laia de cama, e era sobre esta Cama, que as letras já com tinta, iam ser comprimidas e impressa cada folha. Esta cama era um tanto chata de montar, para que a impressão não ficasse vincando as letras...nem com falhas de tinta por esta cama não ter a altura suficiente.
Na foto a seguir, pode-se ver a máquina com o Prato da tinta, um pouco inclinado e a moldura da Cama onde se colocavam as folhas de papel a ser impressas e o braço em que o operador tinha de carregar, por cada cópia impressa.
Eu, embora com 5 e 6 anos, já tinha visto e aprendido todas estas operações, e como as cópias eram umas centenas, eu havia notado que meu avô se chateava de fazer aquele trabalho, por ser muito repetitivo, e um dia, lhe pedi para experimentar a ver se tinha força para puxar aquela enorme alavanca, e ele me deixou fazer, pelo que logo me disse que me pagaria 1$00 , se conseguisse printar umas centenas de folhas, o que assim aconteceu e eu todo contente...
Quando terminei o trabalho e o fui entregar, ele sacou da sua algibeira uma carteirinha de rede de prata, de onde tirou o escudo prometido e, "montado" na minha monocicleta, lá fui rapidamente a uma loja, para comprar dois lápis e uma borracha.

De cada vez que o braço da máquina, vinha abaixo...prelimmm, e saía uma folha impressa.
Mas o mais amargo daquilo, era que eu tinha de limpar com petróleo, não só toda a máquina, além da moldura onde estavam as letras, e ainda teria de colocar as letras todas e os espaços, nos respectivos tabuleiros... mas tinha de ser... e lá ficava este pirralho de gente, todo borrado de tinta preta... Esta operação era-me muito confusa, porque eu havia começado a ler, mas não conseguia ler as letras metálicas... Mas que chato !!!!
Bem que as voltava e olhava , de todas as formas, quase as metendo pelos olhos dentro, mas meu avô, que estava atento e a ver a minha dificuldade, pegou numa receita e me perguntou: "Que letra é esta ?" e eu respondi que era um "C", "E agora esta ?", é um "A". " E agora esta ? ", é um "R". E continuou, "Estas letras estão como se fossem vistas ao espelho, de marcha atrás"... Finalmente eu havia entendido que tinha de ser assim, para que se entenda, quando são impressas.
Assim entendido, logo comecei a colocar as letras no grande tabuleiro, onde eu mal chegava ao cacifo dos "AAAA" ou dos "aaaaa", por ter os braços curtos demais.
Havia sido mais fácil entender o meu professor, o Sr. Silva, que me ensinou a ler, escrever e contar, antes de eu entrar para a instrução primária, mas essa de ver as letras ao espelho...é que ele não me havia ensinado....

Como já contei, havia um torno mecânico em ferro, mas a pedal, onde eu havia visto meu avô tornear as esferas em madeira, para o jogo de croquet, muito popular em S. Miguel, e pequenas peças metálicas, uma mesa de marceneiro com belas polainas e muitos formões, uma mesa onde ele carregava centenas de cartuchos de caça, e um cubículo muito escuro, que só era iluminado por um vidro encarnado, ao que ele chamava de Câmara escura.

Nesta época, só havia chapas ortocromáticas e, por isso, nada sensíveis à luz encarnada. Por isso, a sua iluminação, para todo o trabalho na câmara escura, só podia ser feito com esta cor.

A sua enorme máquina fotográfica, era muito parecida a esta da foto, e o seu operador, tinha de usar um pano muito escuro, para fazer uma perfeita focagem, no seu vidro despolido, com ela bem agarrada a um valente tripé. Depois da focagem, saía o vidro despolido e entrava no seu lugar, uma cassete com a chapa virgem, para ser feita a fotografia.

Aquele sítio, escuro como breu, era uma paixão para a minha curiosidade e eu já sabia que, quando ele para lá entrava, durante horas, não podia abrir a porta. O que estaria ele a fazer com tanta paixão, naquela quartinho escuro ? Pela certa que estaria a "brincar"...
Mas um dia, vi-o a preparar os banhos necessários para revelar fotografias, porque já tinha visto que depois de ele fazer uma fotografia, ele tinha de ir preparar os banhos de revelação e fixagem.

Ele tinha uma balança de ourives onde colocava uns papelinhos cobrados em "V", onde colocava com muito cuidado, uns produtos químicos, chamados Sulfito de Sódio, Hidroquinona, Metol, o Carbonato de sódio, e Alumen. Ele colocava cada um, dentro de água aquecida, a uns 50ºC, para se dissolverem facilmente e aquilo era feito sempre a seguir, no que eu já podia ajudar, porque ele deixava-me andar a mover o líquido com uma vareta de vidro. Depois de todos juntos, ele filtrava o conjunto e despejava dentro de uma cuvete. Era o Revelador.
Depois ia buscar um grande frasco com Hipossulfito de Sódio, que dizia ele ser o Fixador, e depois dele estar bem dissolvido, num litro de água, colocava-o numa outra cuvete.

E ele ia-me explicando:

Este Sulfito de Sódio, o conservador, é para tornar o líquido alcalino e ser mais fácil dissolver o Hidroquinone e o Metol. Sabia eu lá o que era "alcalino..."

Depois entra o Carbonato de Sódio, porque este banho tem de ser fortemente alcalino...

Depois entrava uma pitada de Brometo de potássio, para evitar um véu que se poderia formar, durante a oxidação da prata exposta à luz, pela objectiva, com as imagens. Sabia eu lá, o que era " Oxidação"...

Ou seja, as altas luzes, como um Céu bem iluminado, depois do banho revelador, tornava-se negro e os negros como os cabelos das pessoas, ficavam brancos. Ou seja, a imagem ficava invertida, era o Negativo.

Na passagem ao papel, tudo se trocava e obtinha-se o Positivo que já podia ser bem lavado e posto a secar.

Segundo ele, como a chapa ficava com muita prata virgem, o Brometo de prata, era necessário o banho Fixador que retirava toda esta prata mais ou menos virgem, e já não haver perigo de apanhar luz.
Na câmara escura, ele colocava 5 cuvetes, sendo a primeira com água, a seguir o Revelador, depois outra com água, depois a outra com o Fixador e, ao fim de certos tempos em cada processo, com todos à temperatura de 18ºC, já podíamos abrir a porta.

Meu avô devia ficar intrigado por eu querer saber os nomes e manobras, que eu ia decorando, até que certo dia, mesmo nos bicos dos pés, para poder espreitar o que iria acontecer, ele me convidou para ir assistir ao que ele ia fazer na câmara escura e aquilo de ver uma chapa de vidro, toda branca, só iluminada pela luz vermelha, e progressivamente ver o aparecimento duma imagem, foi das coisas mais interessantes que me havia de acontecer ! Aquilo parecia magia !

Naquela época, só se fotografava em chapas de vidro muito caras e por isso, nos preparativos para fazer uma foto, toda a gente envolvida na fotografia, tinha de estar muito bem arranjada...


Aqui estamos os cinco, no campo do croquet.
Eu tinha mesmo de possuir uma máquina fotográfica, nem que a tivesse de fazer, porque já havia entendido os porquês daquilo tudo e já um pouco mais velho, conseguiria fazer uma, nem que levasse um ano inteiro...



Embora com muitos defeitos, esta foi a minha primeira fotografia, mas tinha tido a honra de pedir a meu avô que disparasse a máquina, o que ele fez todo sorridente, o que me encheu a alma de alegria, porque ele me deixou repetir todas as operações da preparação dos Banhos e usar a sua Câmara escura ! Julgo que ele devia também, estar a achar muita graça à minha coragem , para aquela aventura...
Como ele ia deitar fora os banhos fotográficos, iria fugir das tentaivas das pesagens e do ter de manter os banhos a 18ºC...
Este gosto pela fotografia, me ficou agarrado à pele, para sempre !
Felizmente que começaram a existir as máquinas fotográficas da Kodak e eu já estava na Escola Industrial , com 11 anos, mas só aos 13 anos, me ofereceram uma que de pouco serviu, porque a película era muito cara...
Mas recordo que era o único aluno que possuía uma máquina fotográfica de construção caseira e que levei para a Escola, mas já lhe havia aplicado uma parte dum sistema de relojoaria, de um velho despertador, para eu a disparar e poder ficar na foto. Assim, coloquei-a num banco, dei corda ao maquinismo e corri para o conjunto, tendo-lhe posto antes, uma pedra em cima para ela ficar fixa, mas o mecanismo explodiu, com rodas dentadas por todo o lado e fiquei sem saber se ela teria disparado ou não... Um dos meus colegas mais velho, levou a película para revelar num fotógrafo profissional, e para meu espanto, ela tinha mesmo disparado um instantâneo e havia feito uma bela foto daquela malta toda...mas não fiquei com nenhuma... ou então esqueci-me...

Já nesta altura, eu havia construído vários projectores de cinema , lanternas mágicas...e andava desejoso de fazer um projector com movimento, usando fita de cinema perfurada, e quando pedi ao Mestre da Escola, que me deixasse fazê-la, ele logo me disse que eu iria necessitar do torno, ferramenta a que os alunos só tinham acesso nos anos a seguir, mas eu logo referi que tinha alguma prática do torno de meu avô, e lá me deixou construir. Ela é imprescindível para fazer saltar as imagens e dar-lhes movimento.
Nessa altura, eu já sabia de que iria necessitar duma peça, muito difícil de construir, e que se chamava Cruz de Malta, mas consegui construí-la.

Esse projector, que andava à manivela, é o que vê na foto a seguir e à direita em baixo, mas eu já estava noutra, com o encanto pela rádio.

Em 31/10/2006, eu já havia publicado uma crónica chamada "A magia de vida", e na mesma data, um outro que intitulei "E era um garoto como os outros ".
Não me lembro já, como teria o Grande poeta brasileiro Lima Coelho, descoberto o meu blog, mas a partir de 2007, e com a grande ajuda da muito conhecida e querida MEL, ele começou a reeditar quase todas as crónicas que aqui iam saindo.
Gostaria de lembrar que meu avô só ia "brincar" com as suas paixões, quando não tinha pacientes à espera, mas era tal a sua paixão com a medicina, que a vivia duma forma intensa, nem que estivesse horas à cabeceira dos seus doentes, mas ficava imensamente triste, quando via algum morrer..., por não lhe ter acertado com o tratamento.

Está-me a parecer que esta crónica já estará a ficar muito grande e, por isso, e porque tenho imenso para contar, talvez seja melhor ficar por aqui agora, até à terceira parte.
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1 comentário:

Joaquim Nogueira disse...

Uma vida cheia de vivências e de saberes adquiridos por observação dos mais velhos e por auto experimentação. Foi assim com pessoas como o Mário que o Mundo pulou e avançou