segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Veludo e Pó Caiado..... pelo Prof. João Martinho

João Vitalino Martinho, não descreve somente episódios da sua terra ribatejana ESPINHEIRO, e o leitor irá ficar um tanto surpreendido por o poder ler falando sobre a NAZARÉ, terra de que ele gosta intensamente e desde há imensos anos, passando lá muitos dos seus períodos de férias. Da mesma forma, ele fala das gentes desta terra e com o mesmo sabor, o mesmo detalhe, observação e saborosa linguística.

O Editor Mário Portugal

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Nazaré, terra de sonho !

Veludo e Pó Caiado

Imobilizado num leito do hospital do Sítio, Pó Caiado ruminava a sua vingança.. O cérebro febril não parava. Havia de matá-lo ali mesmo na praia à vista de toda a gente quando a barca do ti Olhinha viesse da pesca e a palecada (banhistas) estivesse em força no areal. Primeiro agarrava-o pelos cabelos e depois batia-lhe com a cabeça ,cem vezes, na roda de proa duma lancha qualquer, mas antes havia de ter uma conversa :

-Olha lá Velude se és home, bota a navalha no chão e vira-te cá pra mim…!O outro, já se vê, havia de vir para ele mas sempre com a mão no bolso a apalpar a mola para lhe dar outra naifada. Pó Caiado, durante as três semanas de internamento cogitou e calculou todas as situações. A Nazaré havia de fazer daquele encontro o caso do dia. Nas tabernas, na lota, nas vielas, nos cafés e na praça, o caso Pó Caiado e Veludo, ia ser falado…..Ah isso é que ia….!

E á medida que o tempo passava e a comichão das cicatrizes se acentuava dando mostras duma cura total, o plano lá ia amadurecendo e sofrendo as alterações que o seu estado humoral comandava. De modo que, quando o médico, numa das suas visitas diárias lhe deu alta e o aconselhou a ter juízo e a não se meter em brigas por causa de mulheres, já o Pó Caiado tinha comutado a pena de morte ao seu adversário para se ficar numas lambadas bem assentes e uns socos nos olhos, com umas nódoas negras que haviam de servir gozo ao mulherio. - Olha cá Velude….tás de lute….quem é que te merreu ? Foi a tua menher..? Pó Caiado, conformado com estas antevisões, lá desceu no elevador pela calada da noite escolhendo um percurso furtivo que o levou a casa sem ser notado pelos poucos transeuntes que encontrou.- Olha lá filhe, queres que coza umas cavalinhas com batatas….?- Quero sim nha mãe…..- Olha filhe gostava que saísses esta noite…tou sempre sozinha…. Faz-me a vontade…preciso tanto de companhia….- bem nha mãe… E lá passaram o serão trocando banalidade, até que o sono os venceu. Mal rompeu a manhã, Pó Caiado foi espreitar o mar….- Que é iste…? O mar tá grosso ..! (e pensando no outro)…Se calhar o malandro pira-se pra S. Martinho e lhe ponho a vista em cima….! Contudo ficou-se pela praia aguardando os acontecimentos. Não tardou que a barca do Ti Olhinha, lembrando um enorme cetáceo, encalhasse no meio de grande rabiosa e com a companha encharcada até aos ossos. Vieram depois o Antoino Vapor e o Álvaro que à cautela deixou o ferro para lá da rebentação, não fosse o diabo tecê-las. Com o mar assim e sem rasos, todo o cuidado era pouco. E não havendo mais embarcações no horizonte voltou a casa para ir tratar dos apréstimos guardados na cabana…mas sempre a remoer…a pensar no outro. Tão absorto e alheado ia, que não deu pela corrida desusada do mulherio que,..finalmente , o reconduziu à realidade. - Acudam….! Acudam…..! Ai o mê rico home que vai merrer…! Pó Caiado apercebeu-se que algo de anormal tinha acontecido e lesto voltou à praia…Sim…muita gente...tinha havido um desastre….Um batel flagelado pelas vagas e tinha-se voltado. Numa confusão enorme de remos, cabazes e redes que bailavam na crista das ondas….no meio duma algazarra enorme e gritos de apelo à Senhora da Nazaré, os de terra iam recolhendo os náufragos. Entretanto um velho de barbas com as roupas coladas à magreza do corpo gritava: - Falta um.. ! Falta um…! É aquele…! É o Velude…! E apontava para o mar onde se via uma cabeça que se afastava levada pela maré. Foi então que o Pó Caiado, mesmo vestido, embalou no declive da duna, se atirou com arrojo e decisão às águas revoltas e ameaçadoras. Com braçada forte e ritmada aproximou-se e agarrando o Velude, pelos cabelos, iniciou a difícil e perigosa retirada, contrariado pela corrente, pelo frio e pela ressaca. Na praia reinava o silêncio. Cada rosto denotava angústia e nos lábios adivinhava-se uma prece: - Deus queira que se salvem…! Deus queira …..E numa lentidão enervante em que a progressão se fazia em avanços alternados com horríveis arrecuas..as duas cabeças ora subiam ora desapareciam…Os de terra apercebendo-se do momento mais crítico gritavam: -.Força….! Força…..! Agora….! Agora….! E de repente uma vaga enorme trouxe-os à borda e deixou-os em seco, exaustos, esfarrapados e semiconscientes. A chusma dos palecos e mirones rodeou-os e prestou-lhes os primeiros socorros. Quando conseguiram pôr-se de pé abraçaram-se e, convulsivamente, choraram lágrimas de arrependimento e perdão, mas o Pó Caiado, num último assomo de energia, finalizou com a simulação duma bofetada no Veludo, numa espécie de certificado de homem de palavra:

- ê nã te disse que as havias de levar ...?

A Nazaré acabara de escrever mais uma página na sua longa história de naufrágios em que nunca faltou coragem e abnegação... como as demonstradas pelo patrão Sousa Lobo que numa noite tempestuosa se levantou da cama, atacado de pneumonia, para dirigir um salvavidas, a remos, que foi acudir a um pobre de Cristo que andava perdido na escuridão e na braveza do mar e a quem a Senhora da Nazaré deu força anímica até chegarem as mãos benditas dos salvadores.....

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