Nota do Editor:
António Águedo Gomes, que ainda não conheço pessoalmente, vive no Algarve e é um autodidacta que já trabalhava aos 11 anos e veio a frequentar mais tarde, a Escola Militar de Electro-Mecânica, onde se distinguiu como primeiro classificado no seu curso, tendo passado a chefe das oficinas de rádio do Batalhão de Telegrafistas, e responsável por equipamentos de altas tensões. Foi impulsionador da robótica programável, matéria imensamente complexa e dirigiu montagens industriais, desde as suas planificações, montagem e orientação. É pois um poli-valente e de extrema simpatia humana.
Além destas inúmeras ocupações, possui o dom de nos diliciar com os seus escritos e foi por isso, que lhe solicitei a bondade de me permitir publicar alguns dos seus escritos, que tanto têm entusiasmado os leitores, como é o caso do artigo que se segue.
O Editor
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« DONA MIRANDOLINA »
Um conto bofial cheio de suspenso mistério
O enigma mirabolante da Dona Mirandolina
A Dona Mirandolina ladrava! Não porque fosse cão, ou cadela no seu caso, mas porque era ladra e fazia ostensivo alarde de o ser!
A Dona Mirandolina, amantíssima esposa do respeitável senhor Manfredo de Miranda, homem de paz, digníssimo presidente do conselho administrativo da rede dos casinos “Clã 10 Tinos” na praia da Pedra Roxa e outras, proprietário do laboratório naturalista “A Herbanária Herbácea” que, sabiamente, de todos os modos conhecidos e para todos os fins, manipulava as mais finas ervas das que uma larga carteira de assíduos clientes não podia prescindir, era uma senhora de prestigiosa e invejável posição, digna de ser admirada, mas muito solta de língua.
Não chegava a casa uma única vez que não dissesse à sua empregada, a Leocádia Soprano, que por tartamuda só se fazia entender a cantar, que tinha estado a roubar no supermercado Ilha, na loja do K. Melo, na botica Francesa, no hipermercado Molde, dizia desenganadamente que roubava em todos os sítios aonde ia, menos a compras que de visita.
Esta mania, porque de mania se tratava, não era uma mania clepto porque esta é uma doença e a da Dona Mirandolina era uma mania, muito mais vezes, pior que a doença.
A fiel Leocádia namorava o Balé Sinistro, cognome por que era conhecido não tanto por ser canhoto, mais por ter sido guarda nocturno no cemitério, habitualmente polidor de fundilhos de calças e de calçadas, andava a fazer uns “taimes” como sentinela nas sentinas do hiper Molde, mister que acumulava com o cargo de técnico de higiene das referidas.
Já farta de ouvir os garganteios da patroa, a Soprano soprou ao Sinistro quanto ouvia da ama, pedindo-lhe recato.
O Balé, que a Dona Mirandolina não queria ver nem ao longe, na posse de tão comprometedora confidência resolveu propalar o que sabia mas sem se comprometer, por receio de perder as mercês da Leocádia.
Obcecado pela ideia, tanto matutou que, ao fim de várias noites a fio sem pregar olho, acabou por sobrevir-lhe o modo de levar a termo, e de maneira ignota, o que se tinha proposto malsinar.
Elegeu, como sustentáculo do acto de denúncia, a parede frontal ao porcelânico assento no interior da cabina das intimidades femininas a que tinha acesso ao fim da tarde quando exercia as suas actividades técnicas de higienista.
Munido de um lápis labial de berrante cor escarlate, grafou, num vistoso e elegante cursivo redondo e cheio, a desonrosa denúncia: “a Dona Mirandalina róba em toudas as lojes e tamém cá”.
Estavam lançados os dados da imputação e a Dona Mirandolina ia aprender que o não querer o namoro dele com a Leocádia não era higiénico.
Quando, na manhã seguinte a caixeira mor foi aliviar-se do stress proveniente do ensaio de uma receita gastronómica secreta que lhe tinha sido transmitida, à sorrelfa, pela cozinheira da cooperativa “A Sopa dos Pobres”, deparou com o opróbio do Sinistro ficou banzada.
Uma acusação de tal jaez a uma senhora de tal qualidade???!!!...
Passada que foi a primeira surpresa e com o stress mais mitigado, lembrou-se que desde que conhecia a Dona Mirandolina no Molde era frequente vê-la de costas encostadas às estantes em conversas fúteis com as arrumadoras dos produtos.
Daí a pensar que poderia ser verdade o que à sua frente lia-se, foi um passo.
Mais um alijamento de stress e mais um passo, e ficou certa de que a postura aliada à conversa eram a táctica usada pela safada da Dona Mirandolina.
Foi posto o gerente a par das suspeições e dos factos e, desde logo, ficou assente vigiar a descarada.
Convocou-se a segurança do estabelecimento para estabelecer as directrizes e tomou conta da horrenda circunstância, pela sua manifesta argúcia, o casal Telésforo cujos componentes eram subgerentes e que, por nome e por norma, levavam tudo até ao fim.
A senhora Telésforo foi incumbida de esquadrinhar, junto dos estabelecimentos mais frequentados pela desavergonhada, algum indício que servisse de prova.
Ninguém adiantou qualquer facto provado excepto que tinha o hábito de se encostar aos expositores e ter longas conversas com as funcionárias das lojas e que não comprava.
Estava confirmada a estratégia! Faltavam as provas, mas essas viriam com astúcia e empenho bem desempenhado.
As arrumadoras foram todas avisadas que deveriam alimentar as conversas da senhora Dona Mirandolina de Miranda e para estarem atentas a todos os seus movimentos.
A partir daqui a Dona Mirandolina passou a dizer à Leocádia que cada vez roubava mais no Molde e com muito mais facilidade.
O sagaz Telésforo, ao saber que o Sinistro desejava a Leocádia aliciou-o para informador das conversas da conversada com a patroa, e veio a saber que o Molde estava a ser mais roubado e com mais facilidade.
A senhora Telésforo foi encarregada de tentar descobrir aonde a senhora de Miranda alapava o rédito dos latrocínios.
A primeira actuação foi encostarem-na à estante dos cosméticos e à saída fazerem cair a sua mala de mão, despejarem-na e verificar o conteúdo.
Nada suspeito! Nada resolvido!
Outras seguiram-se até chegarem-na ao expositor dos fêmeos adornos e após duas horas de conversa com a empregada, aparece a senhora Telésforo que enaltece o assentamento do vestido e, com o pretexto de que lhe caía muito bem, palpou-a toda sem nada encontrar.
Novo revés dos Telésforo e novas informações da Leocádia comunicando que a patroa roubava mais e com mais facilidade.
Desespero, maior que uma noite de dor de dentes, o do infeliz e ineficaz detective que fê-lo resolver falar, muito circunspectamente, com o senhor de Miranda, de quem era aplicado cliente nos “Clã 10 Tinos” e na “Herbácea”, e que levou o ilustre senhor a ficar muito chocado e prometer indagar a verdade sobre o que se passava e assim fez.
E, nessa mesma tarde, o senhor Manfredo de Miranda ficou a saber, pela boca da consorte, que sim, que era verdade o que se dizia, mas que actualmente só fazia no Molde porque toda a gente a ajudava e fazia-o por não poder conversar normalmente com a Soprano que, por ser gaga, só falava num cantar muito esganiçado, o que a fazia ir, com as suas dilatadas conversas, pelas lojas roubar o tempo às empregadas nas horas do serviço.
Prosador do Sotavento