domingo, 7 de janeiro de 2007

ZÉ PAIÃO Por Prof. João Martinho

Pelas mãos do meu muito estimado amigo e prof. João Martinho, tenho a honra de publicar mais um dos seus curiosos escritos, dedicado à gentes da terra ribatejana, ESPINHEIRO, e intitulado Zé Paião.

Segundo ele, estes seus escritos irão fazer parte dum livro que, daqui a algum tempo, será publicado e intitulado "TIOS E TIAS DO ESPINHEIRO" e que, segundo já lhe constou, está já a ser esperado com muito interesse pelas gentes gradas do ESPINHEIRO, por alguém lá da terra, ter descoberto este BLOG, e se apaixonado pelos seus escritos.

O Editor

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( João Vitalino Ribeiro Martinho )

José Francisco Simões

1921-2001

Naquele tempo, durante as cálidas tardes de Verão, após o jantar (meio dia) e a sesta, havia uma espécie de êxodo da população do Espinheiro para a Ribeira, topónimo designativo dum vale verdejante provavelmente cavado pela acção erosiva duma ribeira que nasce para as bandas do Canal e que engrossando um pouco, vai confluir em Pernes com o Alviela onde é promovida a rio Centeio.


Este vale estende-se desde a zona suburbana do Espinheiro onde toma o nome de Almoinhas, até ao Açude situado já no limite da freguesia com a do Arneiro das Milhariças. A par do certificado árabe dos termos almunia e açude que atestam ter sido a população do Espinheiro uma espécie de veículo passivo de transmissão de culturas nas quais, obviamente se inclui , com prioridade, a latina , afirmada através duma zona contígua a este vale a que os antigos chamavam Omnia, termo que significa tudo…que produz tudo tal como afirmava Virgílio nas Geórgicas “ labor omnia vincit “ ( o trabalho vence tudo).


Era nesta espécie de terra prometida que se cultivavam as hortícolas e os frutos que garantiam uma alimentação simples mas de valor certificado pela ausência de pesticidas e se recolhiam os pastos que originavam por via indirecta o melhor leite e os mais saborosos queijos. Daí que, todos os dias uma torrente humana abalava para a Ribeira atrás das carroças e burricos que transportavam as alfaias e outros apetrechos necessários ao amanho e rega das hortas. Inundado de sol e de alegria , o vale adquiria a dimensão dum quadro idílico com todo o bucolismo a renascer dos risos e cantigas, do chap…chap…da água a bater nas rodas das azenhas…dos toques dos pífaros de cana dos pastores para os lados do vale Grou…dos gritos dos rapazes que se banhavam nus na represa do ti Rodrigues….

Fora deste quadro estava o ti Joaquim Piço que, semi deitado na soleira da porta da sua casa, com frente para a loja do menino Quim e para a latoaria do ti Joaquim Pequeno, dormitava e contava o tempo pela sombra dum beirado que se projectava numa parede lateral. Com as ruas desertas e silenciosas, ti Joaquim servia-se deste relógio de sol rudimentar para exercer uma função importantíssima para a época ---O toque das Avé Marias.


Logo que uma cruz previamente feita na parede com um carvão ficava submersa pela sombra do beirado, Ti Joaquim Piço subia ao campanário da igreja e tocava as Avé Marias.. Compassadamente e em séries de 3 toques saíam 9 badaladas que se perdiam nas quebradas longínquas anunciando os deveres cristãos do culto mariano e sinalizando a hora do regresso a quantos mourejavam na terra. Esta prática instituída pelo papa Sisto IV subsistiu até à década de 40 sem que Ti Joaquim e os conterrâneos se preocupassem com o significado da recitação do Angelus tal como faziam os papas na praça de S. Pedro perante a multidão.


Para a generalidade espinheirense as Avé Marias não passavam dum sinal horário de regresso. Era a volta com as couves tronchudas, os nabos viçosos, as melancias…os feijões…as peras e as maçãs etc. etc.


Zé Paião tinha por nome de baptismo, José Francisco Simões.



Por ser carpinteiro de profissão ficava na aldeia mas, logo que ouvia os toques, pousava a serra e a garlopa e encaminhava-se para a fonte do Rio de Baixo . Sentado no bordo do tanque que servia de bebedouro, cruzava os braços sobre o peito esperando a nostalgia do crepúsculo e o regresso da Ribeira anunciado por guizeiras e chocalhos. Em breve o rechiu (rossio) fronteiro, pequeno largo relvado, era invadido pelas crianças ora dando saltos e cabriolas ,ora rebolando ou montando nos animais que estavam à sua guarda no meio de grandes risadas….!



Zé Paião, embevecido, sentia com mais intensidade as raízes que o ligavam ao Espinheiro e se algum amigo se sentava ao seu lado, invariavelmente orientava a conversa na busca duma identificação com base no colectivo , passando em revista factos que presenciou ou outros de que tomou conhecimento através da tradição oral. E porque tinha uma alma grande e generosa, em atitude contemplativa folheava as suas memórias:


-Quando era membro da Junta fiz uma prospecção arqueológica ao Outeirinho Santo. Dizia-se que tinha lá existido uma ermida a S.Bernardo, habitada por um ermitão que gostava de quebrar o seu isolamento convivendo com os pastores que para ali iam apascentar os seus gados….Apenas lá encontrei pedaços de telha (tégula romana) . Seria ali a ermida evocada em 1726 pelo notável pernense Simão Frois de Lemos.. ?


Depois contava a lenda dos mouros que habitavam o vale da Serpe e que vinham buscar leite ao Espinheiro levando no regresso umas brasas que se transformavam
em ouro. Não se esquecia de sublinhar que aquele buraco escavado na rocha a que o povo chamava janela dos mouros não passa dum simples fenómeno de erosão.


Se o interlocutor lhe alimentava o entusiasmo o Zé falava do tal livro:


- Eu vi-o. Lembro-me que estava escrito com letra parecida com a da cartilha de João de Deus. Já estava muito roto. Contava coisas do Espinheiro mas não me lembro de quem era. Eu era muito cachopo….devia ter uns 10 anos…


Mudando do real para o virtual referia:


- A seguir à Várzea está um monte , do lado esquerdo, que tem um tesouro que dá para carregar uma mula…diziam os antigos….!


E se alguém zombava, o Zé mudava para o campo do real:


- A família Costa Ribeiro tinha duas azenhas na Ribeira que foram arrasadas . A vala que as alimentava tinha início no local onde está instalado hoje o campo de jogos do parque do Rio dos Cantos. A da ribeira de baixo esteve inserida num pequeno agregado populacional com 8 moradores. Ficou ligada a um episódio das invasões francesas. Foi o caso que uma criança que nela se encontrava, ao pressentir a chegada de gente a cavalo se refugiou no inferno ( local abaixo do soalho onde funcionam os mecanismos de transmissão).


Corre na tradição da família Costa Ribeiro que os franceses se abasteceram de farinha e foram distribui-la pela população do Espinheiro. Corre ainda que nas lavras e surribas próximas foram encontrados vários esqueletos que não foram identificados mas que provavelmente seriam anteriores ao século XVII, época em que foram edificadas as referidas azenhas.


Zé Paião, de trato simples e afável gostava de dialogar e de colher opiniões. Com modéstia exprimia o seu ponto de vista e informava :


-Naquele tempo a Ribeira pertencia ao Arneiro das Milhariças mas com a criação da freguesia do Espinheiro em 1928 foi desanexada para ser incorporada nesta última o que motivou um contencioso entre as populações que , felizmente, se diluiu com o tempo.


Espevitando a curiosidade, voltava ao lendário:


- A tia Joaquina Tecedeira, uma velhinha com mais de cem anos e que morreu em 1935 ouviu dizer que no Vale da Serpe apareceu uma cobra com asas que voava de cabeço em cabeço…E não se admirem porque em várias terras do norte correm lendas referenciando esse esquisito animal. Não será um estado evolutivo das espécies estudadas por Darwin ? Bem sei que nem todos entendem isto mas alguém sabe porque é que se chama da Serpe (serpente) ..?


Ó Zé trava aí….! Olha que te vais estampar……..!


Zé Paião não desarmava:


-Tenho em casa uma rocha cheia de conchas apanhada no Pedrógão. Alguém tem dúvidas que ali já foi mar , talvez há milhões de anos ? Querem vê-la ? Mas tenho mais…


Os interlocutores emudeciam e porque eram horas da ceia, aos poucos recolhiam a suas casas para saborear as couves cozidas com batatas acompanhadas duma fatia de pão de milho com azeitonas. Zé Paião, silenciosamente abandonava o rechiu para comer a tijala de sopa quente que o esperava. Durante anos foi um livro vivo , um carpinteiro exímio e um autarca exemplar.


Faleceu num dia triste de Outubro, exactamente no dia 7, do ano de 2001 deixando uma saudade profunda nos amigos e familiares. Jaz em campa rasa no cemitério da sua terra.

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