sexta-feira, 7 de março de 2008

E AQUELA "COISA" ATÉ ANDAVA...

Eu já andava há muito tempo, à procura dum carrinho em segunda ou mais mãos, onde me pudesse fazer transportar da quintinha onde vivia, num pequeno chalet mais ou menos abandonado num sítio conhecido por Vale de Estacas, que pertencia aos meus padrinhos de casamento, o Dr. António Ferreira Lourenço e Esposa, para o meu emprego que, embora estivesse mais perto em linha recta, eu teria de dar uma grande volta, pelos campos, por apertados carreiros, até lá chegar.

Por outro lado, ir a direito e a pé, era difícil, porque a propriedade estava toda cercada de arame farpado e se tinha de andar a corta-mato, uns bons 1000 metros...

Estávamos em 1952 e eu andava desejoso de possuir um carrinho para o efeito, até que vim a descobrir uma noticia de um, em Lisboa, cujo preço eu poderia pagar. Ainda me lembro, que eram 3 contos, mais ou menos um ordenado de um mês, naquela altura.

Tem graça aqui lembrar que uns anos depois, o mesmo carrinho andou de mão em mão, e sempre vendido por 3 contos...e a avaria era sempre a mesma... rolamento da cambota estragado...

Mas quando lá cheguei para o ver, até a minha alma ficou um tanto amargurada, pois aquilo era "uma espécie" de automóvel, descapotável, com 4 rodas magrinhas com raios, como usavam as motas daquele tempo.
O motor de um cilindro, era atrás e engatava nas rodas, por uma corrente vulgar de mota.
Felizmente que um grande amigo meu, Julio Cesar, conseguiu descobrir na INTERNET exactamente o modelo e, por isso, lhe estou imensamente grato.

Aquilo tinha tudo o que eu necessitava, ou qualquer carro tem de possuir, mas era tudo em miniatura, o que mais parecia um carrinho de feira.


Tratava-se de um Lloyd, de 1937, fabricado em Inglaterra, com volante à direita.


Aquilo até tinha uma certa graça, de tão pequeno que era, e estava pintado de preto !
Usava um motor de 2 tempos, de antes da guerra, um Villiers, de 347cc , com transmissão por corrente.
Cada roda só era presa por 3 parafusos e, a tampa do motor tinha as duas entradas de água e gasolina, ao lado uma da outra, pelo que se tinha de ter muito cuidado ao escolher aquela que se desejava...senão, lá ia água no sítio da gasolina, ou vice-versa...

Quando me enfiei lá dentro, as minhas pernas entraram por ali dentro e quase tocavam o fundo... muito perto dos faróis, ou seja, aquela caixa, o capô, onde se encobrem os motores normalmente, era tudo espaço para enfiar as pernas...e onde lá estava ao fundo, o acelerador, o travão de pé e a embraiagem.
O radiador, era só um enfeite a tapar a frente do carro.

O motor, era talvez fraco demais para o seu peso...

Para o por a trabalhar, havia do lado de fora da porta do lado do condutor, que era à direita, uma alavanca que se puxava e que devia por o motor em andamento, mas o sistema até já estava tão gasto, que raramente ele arrancava com aquela alavanca. As portas eram muito baixinhas, aí com meio metro de altura e, se uma pessoa estendesse mais o braço, até tocaria o chão com uma mão. Ou seja, para entrar no carro, bastava levantar uma perna de cada vez, mesmo sem abrir as portas.

Assim, mais tarde, acabei por arranjar uma corda que enrolava numa poli, à laia dos motores fora de borda dos barcos, e assim, já era muito mais fácil de arrancá-lo.

Aquilo era realmente cómico de pequeno e quem o olhasse, até poderia julgar que tinha um grande motor à frente... mas o que lá estava, eram as minhas pernas esticadas, e/ou as do acompanhante...

Mas tinha dois faróis pequenos, já com os reflectores muito estragados, pelo que à noite, mal se via a estrada...

Na sua caderneta, já existiam bem mais de meia dúzia de proprietários...

Assim, depois de o ter entendido bem, e como ainda não havia ponte alguma sobre o Rio Tejo, eu iniciei a minha viagem de 80 Km de Lisboa para Benavente, pela única estrada que existia, mas a certa altura, depois duma subida que era logo seguida duma descida, ali para os lados de Alhandra, verifico que algo de grave tinha acontecido, porque o motor trabalhava, mas o carro não andava... Por aquela é que eu não estava nada à espera...

Abrindo a tampa do motor, logo vejo que estava sem a corrente, mas andando uns metros a pé, para trás, lá a encontro na estrada, como se de uma cobra se tratasse. Embora tendo ficado com a mão toda borrada de massa consistente preta, lá me meti na carripana e, como era a descer e ao fundo, havia uma bomba de gasolina, deixei-a ir até lá e parei-a ali por perto, enquanto a olhava todo pesaroso sem ver qualquer saída para o problema.

Estava eu triste e meditabundo, quando sou despertado pela voz de um homem que me pergunta : "Então sr. Portugal, isso avariou ?"

Era o dono num camião de Benavente, rapaz conhecido, que se estava a abastecer de combustível e que logo acrescentou:
"Não se aflija, porque a gente põe essa "coisa" em cima do camião e o levamos para Benavente".

Aquilo até me pareceu a presença dum ANJO e, com mais umas ajudas de outras pessoas, lá empurrámos a carripana para cima do camião e lá vim eu de camião para casa, assentado ao lado do motorista.

Felizmente que não foi difícil arranjar outro elo de engate, e passadas umas horas, já tinha novamente o "meu carrinho" a andar e a fazer pumpumpum.

Num certo Inverno muito frio, e como ele tinha "dormido" na rua, por falta de garagem, quando o fui pôr a trabalhar, para entrar de serviço à uma da madrugada, aquilo tinha uma grande camada de gelo no vidro e foi muito difícil retirá-lo, nem que fosse para espreitar a "estrada" pelo sítio da geada retirada, e lá me pus em andamento, ziguezagueando pelo campo, tentando relembrar os apertados sítios por onde só ele caberia, vendo pessimamente o terreno com aqueles malvados e desprateados faróis, mas eu sabia que num certo sítio, havia uma árvore de pequeno porte, mesmo plantada no meio do carreiro, e que eu a teria de contornar.

"Ela deve estar por aqui perto ", pensava eu, tentando descobrí-la naquela muito escura e gelada noite, mas às tantas, aí estou eu chapado direitinho contra ela ! PIMBA !

E teria partido a cabeça de encontro ao vidro, se não levasse um valente gorro peludo na cabeça... mas o carrinho é que ficou com a "tromba" toda metida dentro e dali não podia andar mais, pelo que tive de ir a pé, fazer o resto do percurso até ao emprego e que ainda era bem mais do que um quilómetro, naquela escurissima noite.

Quando lá cheguei, os outros colegas já lá estavam, mas alguém tinham ouvido um estrondo naquele silêncio da madrugada e logo me inquiriram o que tinha acontecido, em especial por me verem aparecer a pé...

Mas, embora sorrindo, de gozo, até porque nenhum deles tinha um carrinho, nem como o meu, aquilo só serviu de chacota... mas o seu sorriso era bem "amarelo..."

No dia seguinte, lá fui ver o desgraçado estado em que o carrinho tinha ficado, mas como ia lentamente e a árvore fez de mola, não havia grandes estragos, e mais marretada daqui e outra dali, alavanca daqui e dali, lá o consegui voltar a ver a andar.

Nessa época, havia muitos poucos carros em Benavente, uma meia dúzia, e quando lá tinha de ir para comprar o que comer, toda a gente se voltava para ver que raio de coisa era aquela que só fazia pum-pum-pum com o seu motor de um cilindro, a fazer uma barulheira tremenda...

Mas o fabricante, até tinha lá colocado uma espécie de torneira no tubo de escape, e que o condutor podia abrir e fechar, para escolher a melhor potência, ora tornando o raio do motor uma infernal máquina barulhenta, de escape livre, ou uma coisa bem mais silenciosa...

Aquilo, com o escape aberto, até fazia mais barulho do que o claxon, o que eu aproveitava para o substituir, abrindo e fechando rapidamente a torneira...RAM RAM RAM...


Como eu tinha casado há pouco tempo, e a família da minha esposa, estava toda de férias, lá para os lados de S.Pedro de Moel, gozando os banhos de Sol e o iodo do ambiente, eu lhe perguntei se ela teria a coragem de me acompanhar até lá... embora fossem muito quilómetros para uma geringonça daquelas, e como ela aceitou, e era verão, assim nos pusemos a caminho, enchendo bem o deposito da gasolina e o radiador da água, pois o malvado do motor, até parecia que gastava mais água do que gasolina, o que me ia obrigando a parar aqui e ali, para atestar o radiador... e dar descanso à pernas.... além de beber uns golos de água bem fresca, nalguma fonte.

Minha esposa conhecia muito bem o caminho, porque muitos anos antes do nosso casamento, ela era para lá levada a fazer férias e sempre vinha mais preta do que branca...

Mas como aquilo lá ia andando... até dava para gozar quando via algum automóvel parado com avaria, carros muito mais carros do que o meu, e eu parava para lhes perguntar se necessitavam de alguma ajuda...

Aquilo sempre originava que me deitassem uns olhares mais arreliados e raivosos, certamente pensando: "Como é que uma porcaria de carro daqueles, poderia dar alguma ajuda?", e eu lá continuava pumpumpum no meu carrinho gozando a viagem, todo contente.

Mas quando passámos a ponte sobre o Rio Tejo em Santarém, eu tive de voltar à direita para seguir para Leiria e Marinha Grande, já muito próximo de S. Pedro de Moel, mas ainda faltavam imensos quilómetros para andar.

Aquilo tem uma subida muito longa, e estava um outro carro parado mais ou menos a meio, e a deitar fumo por todos os lados, com todos os ocupantes a olhar para dentro do motor... e lá parei para perguntar se necessitavam de ajuda, mas o meu malvado carrinho, é que dali não conseguia ter força para arrancar na subida...

"E agora? Como é que eu iria resolver aquilo?". Bem que eu acelerava a fundo e tentava aproveitar a rotação do motor, para ir largando a embraiagem lentamente, mas o motor não conseguia aguentar e quase se ia abaixo...

Eu precisava dum rampa de onde pudesse embalar, e depois de olhar à volta, sob o gozo e risada dos que também dali não conseguiam sair, mas reparei que mais atrás, uma centena de metros, havia uma entrada para uma quinta. Aquilo estava mesmo a calhar, pois fui deixando o carro ir de marcha-atrás até essa rampa e até acelerei com velocidade, para a conseguir marinhar até ao mais alto possível, sempre em marcha-atrás.

Aquilo era uma "rampa providencial", pois agora poderia arrancar em primeira, a toda a potência, ir pela rampa abaixo e entrar na estrada à maior velocidade possível, o que aconteceu como eu esperava, e lá passei a rir, pelos gozadores que lá ficaram parados e sem saberem como dali sair, com as caras mais chateadas deste mundo...

Aquilo não andava a mais de 50 ou 60 Km hora, mas ia dando para apreciar a viagem , até que às tantas minha esposa me diz para arranjar sítio, pois estava necessitada de fazer um xixi. Eu só não queria parar numa subida, não me fosse o carrito fazer a tal partida de não ter força para arrancar a subir, mas felizmente que lá se encontrou o sítio apropriado .

Na verdade, nem eu nem ela nos deveríamos ter posto a fazer uma viagem daquelas, até porque ela já estava bem grávida... mas a juventude tem destas coisas...

E depois de ter parado mais umas vezes, para encher o radiador de água... e chegámos, perante o espanto de toda a família que nem queria acreditar que tivéssemos tido o desplante de fazermos a uma viagem daquelas, naquela "coisa", mas lá dormimos e a minha esposa foi apanhar um belo dia de Sol na borda de água, coisa que ela sempre adorava fazer, mesmo sabendo que em poucas horas, se tornava cor de chocolate...

Mas ir lá abaixo à praia...com uma rampa tão inclinada...é que nem pensar ! Ele iria, mas para cima, só a reboque!!!

33 comentários:

Anónimo disse...

Mário, eu me delicio com suas histórias. Obrigada.

Um abraço, da Laura Antunes

Escrito por: Anónimo em 2008/03/09 - 17:50:40

Anónimo disse...

Olá Mário, li várias de suas crônicas no Site do poeta Lima Coelho e hoje resolvi acessar seu blog. Você escreve com o coração, por isso é tudo tão bonito.

Josilda Campos

Escrito por: Anónimo em 2008/03/09 - 18:46:41

Mário Portugal Leça Faria disse...

Para conhecimento de todos os leitores, publica-se abaixo os 30 comentários publicados no site brasileiro Lima Coelho "http://www.limacoelho.jor.br/vitrine/ler.php?id=1247#comentarios" a propósito deste post "E aquela coisa até andava"

Anónimo disse...

Meus cumpriemntos pela vida que irradias em tuas crônicas

Comentário Enviado Por: Raimundo Pereira
Em: 17/3/2008

Anónimo disse...

Parabéns Mário. Suas crônicas são maravilhosas

Comentário Enviado Por: José Francisco da Penha
Em: 16/3/2008

Anónimo disse...

Mário, que beleza de crônica. E como você escreve de modo lindo suas memórias!

Comentário Enviado Por: Andreza Amaral Reis
Em: 13/3/2008

Anónimo disse...

Prezado Mário, suas crôncias são muito boas.

Comentário Enviado Por: Esmeralda Bernardino
Em: 12/3/2008

Anónimo disse...

Meus cumprimentos

Comentário Enviado Por: Jesus Freitas
Em: 12/3/2008

Anónimo disse...

Muito bem Mário. Gosto muito de ler suas histórias

Comentário Enviado Por: José Augusto Neves
Em: 11/3/2008

Anónimo disse...

Que beleza

Comentário Enviado Por: Cristina Serra
Em: 11/3/2008

Anónimo disse...

Beijos Mário,
Melissa Costa
......................

esta vida é uma viagem

pena eu estar

só de passagem





Paulo Leminski

Comentário Enviado Por: Melissa Costa
Em: 11/3/2008

Anónimo disse...

Mstre Mário, tenho me divertido muito com suas belas crônicas

Comentário Enviado Por: Fabiano da Cruz
Em: 11/3/2008

Anónimo disse...

Oi Mário, delícia de crônica

Comentário Enviado Por: Ana Terra
Em: 11/3/2008

Anónimo disse...

Muito boa. Gostei de ler

Comentário Enviado Por: Maristela

Em: 10/3/2008

Anónimo disse...

Mário, parabéns


"mostro sem disfarce
o tempo, a vida e o vento
marcando minha face"

Comentário Enviado Por: Mariana Rodrigues
Em: 10/3/2008

Anónimo disse...

Parabéns Mário. É uma crônica muito boa e gostei muito de lê-la

Comentário Enviado Por: Paulo Tardelii
Em: 10/3/2008

Anónimo disse...

Um espetáculo de memória

Comentário Enviado Por: Magali Freitas
Em: 10/3/2008

Anónimo disse...

Parabéns Mário. Suas crônicas são um alento

Comentário Enviado Por: Judith Carvalho
Em: 10/3/2008

Anónimo disse...

Beleza pura Mário!

Comentário Enviado Por: Giba
Em: 10/3/2008

Anónimo disse...

ahahahahaha demais... Parabéns Mário

Comentário Enviado Por: Graciete Lobão
Em: 10/3/2008

Anónimo disse...

Mhário, para dizer que você é o tal, extraordinário e maravilhoso, aqui no Brasil dizemos que "você é o Ô do borogodó". É isso que você é!

Comentário Enviado Por: Marcelo Gomes
Em: 10/3/2008

Anónimo disse...

ahahahaha eu bacana, Mário

Comentário Enviado Por: Jessé
Em: 10/3/2008

Anónimo disse...

Oi Mário, que show de crônica!

Comentário Enviado Por: Magna Lopes
Em: 10/3/2008

Anónimo disse...

Arrasou grande Mário!

Comentário Enviado Por: Talita
Em: 10/3/2008

Anónimo disse...

Adorei

Comentário Enviado Por: Zuíla Teixeira Rosado
Em: 10/3/2008

Anónimo disse...

É do balacobaco esse Mário. Gostei demais

Comentário Enviado Por: Tocantins

Em: 10/3/2008

Anónimo disse...

Mais uma vez, uma crônica de tirar o chapéu

Comentário Enviado Por: Suzana Alencar
Em: 10/3/2008

Anónimo disse...

eheheheeh muito legal

Comentário Enviado Por: Antero de Quental (é meu nome!)
Em: 09/3/2008

Anónimo disse...

Mário, você é um mestre da crônica

Comentário Enviado Por: Antônio Carlos Machado
Em: 09/3/2008

Anónimo disse...

Eh, Mário que show de crônica. Você é dez, amigo!

Comentário Enviado Por: Milena Jorge
Em: 09/3/2008

Anónimo disse...

100 Comentario.

Comentário Enviado Por: curioso paciente
Em: 09/3/2008

Anónimo disse...

Adoreeeeeeei!!!!
Comentário Enviado Por: Sônia Vilela Muniz Em: 09/3/2008

Anónimo disse...

Mário, você é genial, meu chapa. Gosto de ler suas memórias

Comentário Enviado Por: Charles Lamounier
Em: 09/3/2008