domingo, 12 de outubro de 2008

E O VAPOR AGUENTOU-SE...


Esta crónica, devia estar inserida no artigo que escrevi há tempos e intitulado "Amanhã já não tens avô", em Junho do Ano passado, pois foi o que aconteceu no dia exacto do seu falecimento e, porque já tinha a viagem comprada de navio, de S.Miguel para Lisboa, nem me foi possível assistir ao seu enterro.
Era realmente, um dia tristíssimo para mim, mas essa viagem não podia ser adiada, porque não podia mesmo, até porque tinha de estar no Continente, para entrar na Escola Industrial Marquês de Pombal, onde já estava matriculado.
Eu só conseguia recordar a sua expressão sorridente, com a sua cara deitada sobre a sua mão esquerda, mas já falecido.
Aquela impressão de que nunca mais veria aquele meu adorado avô que tanto carinho me havia dado, fazia-me doer e muito a alma...
Até fiquei com a impressão de ele estava à espera daquele dia, para se despedir de mim.
Eu só tinha 16 anos, mas sempre vivi muito agarrado àquela simpatia, àquele carinho que só um avô pode dar a um neto e ele sabia que nunca mais me poderia acariciar nem me ensinar o tanto que sabia, nem me ouvir a ler as notícias dos jornais, ali deitado ao lado dele, na sua cama, embora só recostado, como num sofá.
Como não havia luz eléctrica, ali estava eu horas e horas a ler-lhe as notícias, à luz dum candeeiro de carbureto, que todos os dias era carregado pelo empregado, o Sr. Manuel que, além de ir buscar água numa carrocinha de mão, também tratava de manter o seu carrinho Austin-7 impecável, além de fazer as cobranças anuais das avenças, vinte escudos que cada agregado familiar entregava ao médico, para ter direito a assistência médica em todo o ano, fosse uma ou uma dúzia de pessoas...
Antes disto, eu lhes escrevia do Continente, cartas enormes a descrever como estávamos a viver, das nossas dificuldades e falta de dinheiro...
Foi a este propósito, que escrevi neste blog, o artigo " Um açoriano abandonado em Lisboa", em Fevereiro de 2007.

Sair e entrar nas ilhas açorianas, naquele tempo, só de navio e haviam vários.
Eram necessários 3 dias de viagem, sendo 1,5 até à ilha da Madeira, e outro tanto, da Madeira ao Continente.

Assim que o navio se pôs ao largo, até parecia uma lagoa, quase sem ondulação, e ali íamos direitinhos à Ilha da Madeira, onde ele teria de ser carregado de bananas, anonas, uvas, maracujás, etc.
Comigo, iam outros rapazes, mais ou menos da minha idade, também para estudar no Continente e como o vapor ia carregado de gente, tudo servia de graça e toda a gente se ria por qualquer coisa, embora fôssemos todos na proa do navio, onde há mais balanço, e por isso é a 3ª.Classe.
Como não havia balanço, até parecia que íamos num paquete de luxo, não fora o termos de dormir nos porões, por não haver mais beliches disponíveis !

Eu devia ser o passageiro mais triste que ali ia, e até um tanto ridículo, porque na véspera do falecimento de meu avô, ele me havia pedido para levar comigo a sua viola, uma linda peça de música, de que eu já sabia todos os acordes e afiná-la.
Mas a minha tristeza era maior do que ter à mão aquela viola, e sem coragem para a agarrar, embora a malta protestasse de eu não a tocar...
Mal sabiam eles de onde vinha aquela viola, e a razão porque eu não lhe tocava.

Como o mar estava imensamente calmo, quase todos os passageiros da 3ª. classe, se encontravam debruçados na amurada, da proa, a verem imensos golfinhos, como a tentarem andar mais depressa que o navio...

No dia seguinte, ainda era quase noite, começámos a ouvir uma certa algazarra, porque alguém já sabia que devia estar a terra à vista e vai tudo de se levantar, até porque para muitas pessoas que lá iam, era a primeira vez que iriam ver terra, de bordo de um navio e isso era uma situação empolgante!
Para mim, já era a quarta vez que cruzava o Oceano Atlântico entre os Açores e o Continente, pelo que nada daquilo já me interessava, mas realmente o ver-se terra, tem sempre um certo mistério, pois ao contrário do que se poderia pensar, não se vê uma ilha na penumbra, lá muito longe, mas sim umas casinhas colocadas entre as nuvens, uma aqui, outra ali... a centenas de metros de altura !
Para toda aquela gente, que tinha a sua primeira viagem, eram gritos de alegria ao descobrir: olha ali outra... e outra ali mais abaixo... olha tantas no Céu....
Uma neblina teimosa, bloqueia toda a visão, mas como os navios iam direitos à ilha, de hora a hora, cada vez aparecem mais casas que se perdem pelo céu a dentro, a perder de vista, por entre as nuvens...
Ou seja, nós já estávamos muito perto da ilha, e só aquelas casinhas no céu se podiam ver, mas mal nos aproximamos mais, e a neblina desaparece, estamos somente a umas centenas de metros de terra, e até dá a impressão de que o navio vai entrar de proa pela terra a dentro...
Chega tão perto, que se podem ver as pessoas e os carros a andar, os pequenos barcos de pesca, todo aquele imenso verdejante florido que entra pelo céu a dentro, como se a ilha não tivesse fim, em altura !
E sente-se na pele o que teriam sentido os marinheiros das nossas caravelas, ao avistar terra!...
Mas, subitamente, o navio roda 90 graus e vai a acompanhar a costa da ilha, até num repente, se entrar na baía do Funchal e se poder assistir à azáfama da sua população com a nossa chegada.
De terra vem um aroma imenso de flores e frutos exóticos, inebriante.

Num repente, nos vemos acompanhados de imensos barquinhos minúsculos, com duas pessoas, um adulto que rema, e uma criança de tenra idade, que vai em pé na proa, que se atira à água, depois de ver que alguém de bordo, lhes atira moedas e que eles num repente, enquanto elas fazem zig-zag nas águas cristalinas, eles as agarram, metem na boca, e voltam para o seu barquinho, mostrando ufanos, que as conseguiram agarrar, esperando cada vez mais moedas e assim acontece durante uma boa hora, enquanto o navio se encosta à doca.
Chega a ser impressionante o tempo em que aquelas crianças tão jovens de 5 e 6 anos se aguentam sem respirar e a ir buscar as moedas. E chega-se a ficar preocupado...
Aquilo é especialmente emocionante, porque estando a água tão transparente, se pode ver o trabalho daquelas crianças, e a sua habilidade para nadar a tão grande profundidade, pelo que os passageiros do navio, acompanham estas proezas e mal eles chegam cá a cima, atiram mais e mais moedas, cada vez mais valiosas, e eles lá voltam a mergulhar continuamente...

Depois do navio encostar, é toda a azáfama de ir visitar a aromática cidade do Funchal, esbarrando com imensas pessoas a quererem vender cachos e cachos de bananas lindas, por poucos escudos, e cestos de fruta pronta a comer de tão madura e aromática.
Mas depois dumas horas em que podemos visitar terra, o navio apita e lá vem toda aquela gente, tanto passageiros como vendedores de lembranças e fruta, cada vez mais barata, e é ver um caudal de cachos enormes de bananas chamadas "de prata", por serem gordinhas, muito doces e aromáticas, às costas dos passageiros, convencidos de que as podem trazer até ao Continente e presentear as suas famílias, além de terem fruta para imensos dias....

E acabou a festa, já quase de noite, quando o navio se põe ao largo, agora carregadíssimo de paletes de cachos de banana enchendo os porões, e o convés, mal deixando um cantinho onde a malta se possa deitar para dormir um pouco.
Mas agora, o caminho é outro, pois temos de aproar a uma outra ilha, Porto Santo, a caminho do Continente, mas naquele dia, apanhámos um temporal dos diabos, em que ninguém se aguentava em pé, a não ser às ombradas contra as paredes e toda a gente a vomitar, gritando para que a rapaziada lhes tirasse da frente os cachos de banana, e as caixas de maracujá, e as belas uvas, e as anonas, etc. etc. e que assim vão desaparecendo das portas dos camarins, embora ninguém se atreva a levantar dos beliches, tais são os balanços!

Eu já tinha apanhado mar mexido, mas aquilo era demais !
Mesmo com a proibição de se sair na proa, eu ainda me consegui esgueirar e fugir para a ré, subindo os degraus que levam para junto da chaminé, onde se podia apreciar a robustez daquele navio, a tentar não se transformar em submarino, mas metendo toda a sua altíssima proa pelas enormes vagas frontais, entrando toneladas de água por cima da proa e convés, para logo a seguir, subir uma nova vaga, subir, subir , até já com ela toda livre, e quase metade do navio sem água por baixo, voltar a enfiar-se pela nova vaga a dentro, estremecendo de proa a popa, num estrebuchar violento dum monstro, que perecia estar a guerrear, para não morrer sufocado...

E toda a noite foi assim, até que tudo acalmou e lá fui para o porão da frente, deitar-me um pouco, no meio duma tremenda confusão de caixas de banana espalhadas por todos os lados...
Só ao acordar, é que todos estranhámos que o navio estava todo de lado... Que coisa estranha, quase a emborcar... numa posição realmente ridícula para um navio daquele porte...
Quando chegámos cá fora, é que vimos o porquê daquela situação. É que as grades de caixotes que vinham no convés, tinham deslizado todas para o lado esquerdo, desequilibrando imenso o navio!!!
Estávamos à entrada do Rio Tejo e o navio parado, todo tombado, numa figura realmente ridícula !
E ali estivemos horas e horas, à espera que nos viessem rebocar, qual navio pronto a emborcar-se, mas o vapor, se aguentou !

Quem hoje se faz transportar de avião, não faz a mais pequena ideia do que era uma viagem de barco, o encanto de pensar nas caravelas, nos descobrimentos, nem as paisagens que se podem ver durante horas, enquanto os navios vão andando até entrarem no porto do Funchal.
E só dão pelo intenso aroma da ilha, quando saem dos aviões, mas muito longe da cidade do Funchal, das suas gentes e das habilidades daquelas dezenas de crianças alegres e corajosas, que se atiravam à água na ânsia de ganhar mais umas moedas.
Na realidade, uma viagem por mar, à ilha da Madeira, onde meus avós nasceram e se criaram, era das coisas mais emocionantes por que uma pessoa pode passar.

20 comentários:

Anónimo disse...

Mas que bonita descrição. Foi encantador acompanhá-lo nesta emocionante viagem. Muitos parabéns por este lindíssimo trabalho

Escrito por: ana ramon em 2008/10/14 - 10:21:19

Anónimo disse...

Ô Mário, parou de escrever?
Alice Matos

Escrito por: Anónimo em 2008/12/02 - 11:31:47

Anónimo disse...

Este comentário é só para experimentar se há algum problema na publicação dos comentários, como alguém disse. Mas pelos vistos está tudo bem.
Beijinhos

Anónimo disse...

Oi Ana + Bela e Ramon

Como bem pode calcular, já lá fui ver a secção dos comentários e achei óptimo. Parabéns !
Logo que consiga entrar de novo, no meu blog, já tenho assunto para mais umas crónicas.
Nunca saberei agradecer-lhe o que tem estado a fazer !

Carinhos do
Mário

Mário Portugal Leça Faria disse...

Para conhecimento de todos os leitores, publica-se abaixo os 15 comentários publicados no site brasileiro "Lima Coelho" a propósito deste post "E o vapor aguentou-se"

Anónimo disse...

Mário a sua capacidade de descrever os fatos que relembra é extrordinária

Comentário Enviado Por: Ernê
Em: 15/10/2008

Anónimo disse...

Parabéns Mário, mais uma vez

Comentário Enviado Por: Roberto Carneiro Andrade

Em: 14/10/2008

Anónimo disse...

Oi Mário, adorei

Comentário Enviado Por: Palmira Rezende
Em: 14/10/2008

Anónimo disse...

Caro Mário, é uma crônica bonita

Comentário Enviado Por: Estela Ramalho
Em: 14/10/2008

Anónimo disse...

Blz de crônica

Comentário Enviado Por: Lara
Em: 14/10/2008

Anónimo disse...

Mário, que gostoso ler a tua bem
escrita crônica

Comentário Enviado Por: Paulo Tardelli
Em: 14/10/2008

Anónimo disse...

Amigo Mário, é preciso agardecer a beelza de como compartilhas tuas memórias em forma de crônica. Muito obrigado!

Comentário Enviado Por: Valmir Botelho
Em: 14/10/2008

Anónimo disse...

Oi Mário, que bela!

Comentário Enviado Por: Telma Loiola
Em: 14/10/2008

Anónimo disse...

É uma crônica maravilhoosa

Comentário Enviado Por: Márcia Lopes
Em: 14/10/2008

Anónimo disse...

Geeente, que bela crônica, hein Mário?

Comentário Enviado Por: Roberta Moreira
Em: 14/10/2008

Anónimo disse...

As crônicas do Bettancourt são sempre sublimes e belas. Sinto muita paz quando as leio.
Que tenha vida longa para escrever estas lindas páginas. Lindas e sublimes, repito.
Grande abraço ao autor.

Comentário Enviado Por: Leila Jalul
Em: 14/10/2008

Anónimo disse...

Um show de crônica

Comentário Enviado Por: Rebeca Ferreira
Em: 14/10/2008

Anónimo disse...

Obrigada Mário por compartilhar as ricas histórias que fazem parte de tua vida

Comentário Enviado Por: Mirtes Trinta
Em: 14/10/2008

Anónimo disse...

Valeu, Mário. Que viagem, hein?

Comentário Enviado Por: Irene Rendeiro
Em: 14/10/2008

Anónimo disse...

Mário, ler tuas memórias é sempre um prazer

Comentário Enviado Por: Paulo Henrique
Em: 14/10/2008