domingo, 24 de fevereiro de 2008

ERA UMA AVÓ DE SONHO...

Quando mais idoso de sinto, mais me lembro das pessoas que emolduraram a minha mocidade, talvez porque esteja a chegar à idade com que elas desapareceram deste mundo...
Já tive a oportunidade de falar muitas vezes desta tão simpática velhinha, em outros artigos neste blog, como "No Centro das Festas", em 6/12/2006, "E cegou de tristeza", de 7/7/2007, em "A casa cor de rosa" de 22/6/2007,etc.
Esta minha avó, que mais parecia uma "rainha" no seu trato, foi a pessoa com quem mais convivi, desde que nasci em 1927 e até atingir os meus 14 anos, quando a minha família se começou a desmoronar com o falecimento de meu pai, e depois meu avô.
Esta Senhora, Leonor Ferraz Bettencourt Leça, não devia saber nem fritar um ovo, pois sempre havia arranjado quem trabalhasse na cozinha, mas estava sempre perto de mim, só se ausentando quando, a pé, ia assistir às missas dos Domingos, pois a nossa igreja dos Ginetes, em S.Miguel, Açores, só estava a uns 200 metros de distância.
Mas por causa das alterações que se desejam implantar à língua portuguesa, actualmente, não resisto à tentação de vos enviar uma parte dum saboroso mail duma ilustre brasileira, que até por acaso é médica, e que recebi do Brasil há poucos dias.

"Os falares da nossa gente são infinitos. No Brasil, não há propriamente dialetos.
Há falares com entoações diferentes e, claro, alguns termos mais usuais em determinadas regiões. Todavia a TV praticamente uniformizou a língua, digo os vocábulos e seus significados,
não apenas nas grandes cidades, mas nas zonas rurais também.
O português dito erudito é exatamente igual, de norte a sul do país.
Imagine eu que nasci no sertão do Maranhão, numa família praticamente quase 100% analfabeta, por parte de mãe, que fui pra uma escola interna com cerca de 11 anos... depois morei na capital do Maranhão, depois em Minas Gerais, depois em São Paulo, depois Minas outra vez, desde 1995...
Mas é claro que quando abro a boca as pessoas perguntam logo de onde sou. Porém quando telefono pra alguma amiga no Maranhão, quem atende o telefone diz logo que "é uma mulher de uma fala diferente!"
Ou seja, eu falo uma língua de um lugar que não existe!!!! "

Como o leitor poderá depreender, este mail me encheu as medidas, como por aqui se diz, por vir duma brasileira nascida e criada no Brasil e muito atenta a tudo quanto se passa à sua volta.
Aquele final "Ou seja , eu falo uma língua de um lugar que não existe!!!", é do melhor !
Este seu mail, me trouxe à lembrança, 70 anos atrás, quando eu ainda andava de calções e tinha como avó, uma ilustre senhora madeirense, que por ter convivido com imensa gente ilustre em todos os lados, falava correctamente, tanto o português, como o espanhol, inglês e francês, e ATÉ BRASILEIRO...
Se algum brasileiro ler este artigo, até achará estranho que eu tenha evidenciado a palavra "brasileiro", mas já vai ver-se porquê.

Quando por volta de 1900, minha avó teve de ir viver para os Açores, foi encontrar um ambiente onde talvez 80% das pessoas eram analfabetas e muitas tiveram de emigrar à procura de melhor sobreviverem, e muitas foram parar ao Brasil, onde se dizia que havia a "árvore das patacas". Era só estender a mão e agarrar...
Claro que não era nada assim, mas para as gentes emigrantes açorianas, era como se fosse...

Ela rapidamente se apercebeu de que havia de dar a mão a pessoas do campo, que tinham família no Brasil, mas não sabiam escrever. Elas lá iam à procura de ajuda e pedir concelhos sábios. Todo o seu tempo de vida, levou a ajudar toda a gente e ensinando línguas a todos os netos e música a alguns, ou escutando atentamente alguma senhora analfabeta, solitária e saudosa de algum ente querido que tivesse emigrado e lhe pedia para ser ela a escrever uma cartinha...
E as pessoas se aproximavam dela, com o respeito de uma "rainha", afastando-se curvadas de marcha atrás, depois de lhe terem beijado a mão e dito "que Deus a abençoe"...
Ela tinha essa virtude de estar aberta a toda a gente, fosse uma pessoa completamente analfabeta, ou doutorada ou Almirante, ela sempre mostrava aquela fisionomia sorridente e simpática. Era uma super-mulher !

Algumas destas pessoas do campo, que a iam visitar, e lhe levavam sempre uma gracinha, um franguinho, uma fruta, um doce, algumas tinham alguém de família no Brasil, algum analfabeto naturalmente, que uns anos depois, cheios de saudade da sua terra natal, voltavam para matar saudades e mostrar às suas famílias, como estavam agora bem na vida, e inevitavelmente tinham de ir visitar minha avó, para lhe agradecer as cartas que ela tinha escrito, e falando a língua brasileira que tinham aprendido no decorrer dos anos pelas lindas terras brasileiras.
Minha avó deliciava-se a ouvi-los falar aquela "língua estranha" e como tinha muita habilidade para decorar línguas, ao fim de poucos minutos, já estava a falar brasileiro também, para grande alegria dos emigrantes que assim, já a compreendiam muito melhor, perfeitamente bem.

Foi por uma altura destas, e num 1º de Dezembro, que o meu professor de Instrução Primária, o Sr. Santos, me enfiou nas mãos um soneto escrito por um brasileiro, sabe-se lá quem, e que eu teria de decorar, para declamar naquele dia festivo.

Minha avó, ao ver que se tratava dum poeta brasileiro, logo me disse que eu teria de falar em brasileiro, mas eu sabia lá como era aquilo !!! Então não era português como o nosso ?
Então, ela sorrindo com o soneto na mão, pôs-se a lê-lo para mim, em voz alta, para eu conseguir entender aquela "estranha" forma de falar, mas como eu não acertava de forma alguma, ela agarrou um lápis e me chamou a atenção para o facto de que no Brasil todas ou quase todas as vogais são acentuadas, enquanto que o português de Portugal, usa de certos truques para acentuar certas vogais. E ia explicando: a gente diz aqui, por exemplo, "acção", em que acentuamos o "A", mas porque lá foi colocado um"c", antes do "ç".
A actual revolução na lingua portugesa, veio retirar aquele "c" , e assim, para nós, ficou aaação...um "a" morto!
Eu era muito novinho, talvez com 8 anos, e lá ia compreendendo melhor ou pior.
Da mesma forma, dizia ela, os brasileiros têm dificuldade em proferir o "lê" final, como em Brasil ou Igual, pondo neste "lês" a pronúncia de "U". Assim, para nós, eles dizem "Brasiuuu" e "iguauuu". E eu lá ia repetindo aquela pronúncia estranha, na minha melhor forma, com um sorriso um tanto amarelo...

Depois, dizia minha avó, eles usam no Brasil, em todas as palavras terminadas em "ente", como "felizmente", "rapidamente", de incluir TXX, atrás do último "te". Assim eles dizem "felizmentxxe", "rapidamentxxe".
Pior, pensava eu, isto está cada vez a ficar mais complicado... mas aquilo até era giro... era como se estivesse a aprender outra língua...

Depois ela disse-me que o brasileiro acentua quase todas as vogais, sem a necessidade de as acentuar. Assim, eles dizem "félizmentxxe", "rápidamentxxe", e pronunciam todas as palavras mais lentamente do que nós aqui.
Então, ela foi ao soneto e vai de acentuar uma data de vogais e, para eu demorar mais as palavras, colocou mais umas letras como "eee" , e o "txx" na palavra "sente" e que ficaria "sentxxxe ".
E mais, o brasileiro não pronuncia o "r" final. Assim, "Senhor", eles proferem "sinhô", bem como "lavar", eles dizem "lavá".
Eles tambem não dizem "daz-me um copo de água?", mas sim "mi dá um copo de água", " Mi fala di tua vida".
Mas que grande confusão para a minha cabeça, mas ela pegou no soneto que se intitulava "Mal de pés" e vai de lê-lo à brasileira. Eu até dei uma grande gargalhada ! Minha avó era realmente um espanto !
Nota: Como já se passaram 70 anos, já mal me recordo do soneto certo, e isto já nem é soneto nem é nada, mas era mais ou menos assim:


Cérto pátricio nosso brásileeeiro,
Dépois de ter córrido o mundo intéééiro
À procura do mal que tinha em seus pééés,
Se encontrou num trém com um inglêsss.

Si mostrou logo o bifi incómodááádo ,
Fungando para um e outro lado,
À procura dum fóco de inféééção...

Eis senão quando o brásileeeiro,
Apontando com um dedo a bóóóta,
Riclama, heis sinhô o mótivo, a rázão,
E não sei como inda vivo...

Aí o inglês lhe pergunta: e lavando,
Réfina ou sentxxe algum álivio ?
Aí o nosso brásileeeiro réspondggge:
Tenho isáurido a médicina,
Más, lavá, lává ...é que nunca exprimenteeei.

E lá vou eu decorar aquele encrenca, tentando dizer como minha avó queria, e tantas vezes tive de repetir, que até o resto da família, que estava por perto, achou engraçado e me ia acompanhando no soneto dito à brasileira.
Só faltava o dia da festa e, perante a curiosidade daquela malta toda, lá fui para o palco e MUITO LENTAMENTE, feito pessoa importante, comecei a recitar o meu soneto "MAL DE PÈS", e de tal forma me saí, que rebentou uma estrondosa salva de palmas... e lá tive de bisar aquilo novamente, mais duas vezes.
Toda aquela gente se devia estar a perguntar como é que um garoto que nunca teria visitado o Brasil, poderia falar tão bem o brasileiro....Pois, mas não sabiam que eu tinha uma avó de sonho, em casa...
O português SOFRE !!!!

22 comentários:

Mário Portugal Leça Faria disse...

Para conhecimento de todos os leitores, publica-se abaixo os 21 comentários publicados no site brasileiro Lima Coelho "http://www.limacoelho.jor.br/vitrine/ler.php?id=1105" a propósito deste post "Era uma avó de sonho"

Anónimo disse...

mário, sou encantada com tuas crônicas de meméorias e tão bem escritas

Comentário Enviado Por: Vanessa Trindade
Em: 17/2/2008

Anónimo disse...

Oi Mário, saudades de vc. Bela crônica de culto à sua avó
Comentário Enviado Por: Maria das Graças Campelo
Em: 17/2/2008

Anónimo disse...

aueria falar contigo de velhos e novos tempos
Comentário Enviado Por: telmo.alves@sapo.pt
Em: 17/2/2008

Anónimo disse...

Oi Mário, adoro ler tuas crônicas. Obrigada
Comentário Enviado Por: Janaína Rocha
Em: 16/2/2008

Anónimo disse...

Adoro e aprendo muito com a escrita deste senhor, os meus parabens para ele. E obrigada por publicar todos estes artigos.
Comentário Enviado Por: www.tibeu.blogs.sapo.pt
Em: 12/2/2008

Anónimo disse...

Máááááario, achei muito legal!
Comentário Enviado Por: Olívia Oliveira
Em: 10/2/2008

Anónimo disse...

Prezado Mário, entendo a sua preocupação, mas deixa isso pra lá, vc ainda viverá tanto tempo que vai se acostumar muito bem com as modificações na língua portuguesa. E os jeitos com que se fala português são muitos. Se conforme. Mas a tua crônica é excelente. Parabéns
Comentário Enviado Por: Antônio Brito
Em: 10/2/2008

Anónimo disse...

Oi Mário, é deveras interessante que escrevas sobre os diferentes modos de falar portuguêm, mas também estou de acordo que TODOS são corretos. Não cabe achar que só o português falado em Portugal é o correto, até porque decerto em Portugal fala-se português de diferentes modos, ou não?
Comentário Enviado Por: Graciete Lobão
Em: 10/2/2008

Anónimo disse...

Mário, que delícia tuas crônicas!
Comentário Enviado Por: Renata Trusseau
Em: 09/2/2008

Anónimo disse...

Oi Mário, sua preocupação com as diferentes entonações com que o português é falado é muito interessante. Todavia preocupa-me que poss achar que só como se fala em Portugal é legítimo. É preciso cuidado para não parecer xenofobia.
Comentário Enviado Por: Vilma Muniz
Em: 09/2/2008

Anónimo disse...

Parabéns Mário
Comentário Enviado Por: Roberto Alves
Em: 08/2/2008

Anónimo disse...

Oi Mário, mais uma vez, parabéns por ter tido a felicidade de te ruma avó tão linda
Comentário Enviado Por: Mônica Santiago
Em: 06/2/2008

Anónimo disse...

Mário, eu fico encantado cada vez que leio suas memórias
Comentário Enviado Por: Gonçalo Pires
Em: 06/2/2008

Anónimo disse...

beleza de crônica!
Comentário Enviado Por: Floripes Nunes
Em: 06/2/2008

Anónimo disse...

Blz Mário. Que avó linda!!!!
Comentário Enviado Por: Vanda Cruz
Em: 06/2/2008

Anónimo disse...

Ai Mário, que doces recordações compartilhas conosco! Obrigada!
Comentário Enviado Por: Maria Mendes
Em: 06/2/2008

Anónimo disse...

Oi Conceição, gostei do teu estilo e da crônica em si.
Comentário Enviado Por: Liliana Cintra
Em: 06/2/2008

Anónimo disse...

Beleza de crônica! Como seus escritos me fazem bem. Obrigada!
Comentário Enviado Por: Beth Lobo
Em: 05/2/2008

Anónimo disse...

Que crônica linda Mário!!!!
Comentário Enviado Por: Juraci Feitosa
Em: 05/2/2008

Anónimo disse...

Muito boa! Parabéns, Mário!
Comentário Enviado Por: Graça Madeira
Em: 05/2/2008

Anónimo disse...

Mário você é um fenômeno pra escrever. Suas crônicas são de uma beleza inconfundível
Comentário Enviado Por: João do Apicum
Em: 05/2/2008