sábado, 9 de junho de 2007

ANTÓNIO GARGOLA por Prof. João Martinho

Mais uma vez, tenho o prazer de publicar mais um artigo do já conhecido Prof. Vitalino Martinho, e mais uma vez também, dedicando os seus agradáveis comentários, a uma pessoa da sua terra natal, o Espinehiro, no Ribatejo. A sua forma muito peculiar de descrever as pessoas, encanta qualquer leitor, mesmo dos mais exigentes.

António do Vale Soares
1902-1964

Conhecido na gíria popular por António Gargola, este circunspecto espinheirense parece espelhar no rosto um passado em que a felicidade não cavou traços indicativos duma vivência descontraída e feliz.


A boca forçosamente cerrada traduz a introversão de quem está indisponível para diálogos com um mundo desafecto e o cenho fechado e sombrio parece traduzir um ar de desconfiança e expectativa , em permanente atitude de autodefesa .


De facto, pelo retrato do António adivinha-se o drama familiar em que esteve envolvido, quando a mãe, Ti Rosa, faleceu com 35 anos, deixando 5 filhos indefesos a quem não foi possível prodigalizar os carinhos que fazem a alegria e a felicidade das crianças.


António emerge ,assim para a vida, sem os beijos e as carícias maternais tão importantes para o desenvolvimento afectivo e formação do carácter que definem a linha que norteia a existência e justifica os comportamentos necessários para uma boa integração social.


Diz-se que , quando a vida é madrasta, o enteado move-se na indecisão, sempre de pé atrás, numa recusa constante de se ver confrontado com surpresas desagradáveis.


São estas pessoas desvalidas e despeitadas que reagem perante os poderes instituídos contra os quais estão em permanente contradição por sentirem ter sido abandonadas nos transes mais difíceis da sua existência.



António confirma a proposição com episódios de constante resistência às leis instituídas. Sem ter qualquer conhecimento do direito romano, para ele a caça era mesmo res nullius, isto é, não era de ninguém , por isso usando furões e armadilhas, assessorado pelo Manuel Caldas, dizimava coelhos e lebres em profusão.


A G.N.R de Alcanena informada e, por certo pressionada , moveu perseguição tenaz ao infractor. Várias vezes veio ao Espinheiro mas sem resultado porque o ruído dum motor ou a vista duma farda desencadeava tal alarme que todas as portas se fechavam e as ruas ficavam desertas. Sempre o António Gargola se escapava como enguia escorregadia entre os dedos.


Perante o insucesso, a Guarda não desistiu e pôs em acção uma estratégia maduramente pensada. Ao invés de entrar no Espinheiro pela estrada que normalmente utilizava , vinda de Alcanena , iria pelo lado oposto, na convicção de que entrando de surpresa no Espinheiro teria êxito na captura.. Assim, passou pelos Amiais de Cima , por Abrã e à saída desta localidade ,no sentido que levava ,encontrou um homem com uma volumosa saca às costas , levando pela mão uma criança . Estabeleceu-se o diálogo:


- Oiça lá …você vai para o Espinheiro ? Aproveite que nós oferecemos uma boleia…


-Agradeço muito…..mais pela menina que por mim…o raio das batatas pesam como chumbo….!


Acomodados ,prosseguiram a viagem. Um dos guardas , ao passarem na Várzea observou :


-…Vocês têm aqui uma bela zona de caça….


- Pois temos mas en nas (quando) as putas sendo muitas tiram o ganho umas às outras….

- O que é que você quer dizer com isso ?

-Atão, quero dezer que há muita gente a dar cabo dela e nã calha a cada cão seu osso….


- Você conhece lá um gajo chamado Atoino Gargola ? volve o guarda.


-Se conheço….Esse malandro é dos piores…Só ele tem alguns cinco furões…!


- Você é capaz de nos ensinar onde é que ele mora ?


- Sim senhor…é mesmo ao pé de mim…


Passados minutos estavam subindo uma rampa, já dentro da povoação, quando o Gargola, em voz baixa, ordenou que parassem:


-O gajo mora naquela casa ao lado do velho que tá sentado naquela soleira. Deixem-me aqui pra ele não desconfiar de mim….


E sumiu no labirinto aldeão com as batatas e a miúda


Vai a patrulha junto do ancião e pergunta:


- O senhor, por acaso, viu por aqui um gajo chamado António Gargola ?


- Vi sim senhor, é aquele que ali em baixo se apeou do vosso jeep…


Entreolharam-se os guardas e num sentimento de grande frustração comentaram entre si : - e nós que tivemos o pássaro na mão…!


Deste episódio testemunhado pela filha Silvina que era então a criança acompanhante, ressalta a argúcia , a calma , a inteligência e o calculismo com que o António resolveu a situação, nunca se deixando apanhar até que um veículo o matou em Santarém, selando a sua vida com um epílogo triste e imerecido .


A sua voz grave e sonora extinguiu-se, a coragem com que enfrentou os revezes e a verticalidade com que defendeu os seus princípios pela força física e pela perspicácia, contra o isolamento e o ostracismo , foram os ingredientes com que justificou a máxima de 2000 anos: “ INOPI NULLUS AMICUS” ( o pobre não tem amigos ) .Nem parente, pode o leitor acrescentar….

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