sexta-feira, 22 de junho de 2007

A « CASA COR-DE-ROSA »

A casa onde eu nasci, há 80 anos, ainda lá está !

Ela lá está na lindíssima terra de Ginetes, em S. Miguel, Açores.

Do lado de lá um cabeço, onde eu fui tentar ver cair um raio e fui bem castigado, por isso...

É a história contada em 11 de Setembro de 2006 e intitulado "À espera dum raio que não me partisse ".

Parece impossível que tenham passados tantos anos, e numa terra muito dada a tremores de terra, a casa de meu avô ainda lá esteja, em perfeito estado de conservação ! Tudo tinha sido feito para durar !

Na realidade, ela foi feita com imensos cuidados de resistência, pois estava assente sobre 5000 cunhais de pedra, com cerca de um metro de comprimento e uns 50 cm de largura e altura.

Esta bela foto, foi-me enviada por uma prima que lá vive perto, a Maria Leonor Leça, e há poucos dias, contando-me como tudo aquilo está diferente de há 80 anos, estradas então de terra, agora alcatroadas, muitas outras moradias na mesma rua, Escola EB2, campos de jogos polivalentes, enfim, imensas novidades !

Nesta altura, está desactivado o Campo de Crocket, que existia em frente à casa, mas o meu primo Alberto Leça, como Vereador da Câmara, insistiu que fosse feito um outro, do outro lado da rua, quase em frente à "casa cor-de-rosa". Estes enormes campos, são muito parecidos a uma grande mesa de bilhar, em que os jogadores, munidos de tacos e bolas de madeira, obrigam as bolas a passar em certas direcções, os arcos implantados no solo. O terreno tem de ser o mais perfeito possível e é norma cobrí-lo de areia que é alisada a rodo, antes de cada jogo.

Como é óbvio, sendo uma terra vulcânica, toda a areia é preta, conforme se pode ver na foto.

Era uma casa enorme, com tectos muito altos e 6 amplas divisões a que se tinha acesso por um largo corredor central.

Mal se entrava a porta, pelo lado esquerdo, à esquerda era o quarto de meus pais e à direita, a sala, onde o piano de cauda tocava a toda a hora. A seguir era o quarto da garotada e em frente, a sala de jantar com uma enorme mesa no meio. Logo de seguida o quarto dos meus avós e à esquerda, o consultório, a que se tinha acesso voltando à direita do portão de ferro.

Um pequeno corredor, dava acesso à cozinha e uma escada para a falsa (sótão), onde podíamos brincar a-vontade.

Nesta "falsa" ainda existia o quarto da criadagem feminina, que dava acesso a essa janela em cima, e do lado oposto, uma outra janela igual, dava acesso à oficina de meu avô, com todas as ferramentas a que ele tinha acesso, como carpintaria, torno mecânico, fotografia, caça, tipografia, forja, etc. etc. Era aqui que ele "fabricava" os tacos e bolas para o jogo do crocket e fazia os brinquedos que nos ofereciam pelo Natal, e onde aprendi a manusear as ferramentas.

Quando se tem a sorte de atingir a bonita idade dos 80, como graças a Deus, me aconteceu, olha-se com grande saudade, pelo menos 70 anos atrás, quando ainda, de calções, estava na Instrução Primária...a ouvir com todo o cuidado, as explicações do meu saudoso professor, Sr. Santos. E foi ele que me deu as primeiras informações das comunicações via rádio. Como aquilo me espantava e a meu irmão Carlos Mar !!!

Ele possuía um dos primeiros rádios alimentados por uma grande caixa de pilhas, mas estava avariado e um dia nos perguntou, se o gostaríamos de possuir mesmo assim, e nesse mesmo dia, entusiasmadíssimos, o fomos buscar.

Eu carreguei com as pesadíssimas pilhas, enquanto meu irmão se ia deliciando a olhar os seus "intestinos", aquelas brilhantes válvulas, as bobines e condensadores variáveis... Nunca havíamos visto um rádio, aquela máquina estranha, que captava estações de rádio a muitos milhares de quilómetros, e meu avô, mal chegámos a casa, nos pôs a desmontar pilha a pilha, e a limparmos os bornes. Depois ele atestou cada vaso com líquidos "especiais" e ao voltar a ligar a maquina, ela começou logo a funcionar ! Que maravilha...tantas centenas de estações a fazerem pio,pio,pio (telegrafia) e outras com noticias e música.

Naturalmente, no dia seguinte, logo fomos informar o professor Santos, de que a máquina já estava a funcionar e aí eles nos explicou como deveríamos fazer uma grande antena, e até nos ofertou uma folhinha de papel, com uma data de risquinhos e pontinhos, que ele dizia ser o código de Morse, aqueles pios,pios, pios, que se ouviam aos milhares. Meu irmão, mais velho do que eu 3 anos, logo a agarrou e fomos construir, com a ajuda de meu avô, duas "chaves de Morse", para podermos "falar" um com o outro à distância duma centena de metros . Estávamos lançados na rádio !!!

Mas, ao relembrar esta remota época, vem-me à ideia o porquê de ele, meu avô, ter escolhido os Ginetes para viver, quando era um médico madeirense e ainda por cima, naquele sítio; foi muito bem escolhido !

Ele tinha estado a viver uns tempos, no lado Norte da Ilha, na Maia, mas aquilo lhe dava imenso trabalho e poucos proventos. Assim, resolveu um dia, dar uma volta a oeste da ilha, no seu "char-a-banc", porque estava uma vaga aberta de médico, naquelas zonas. Assim, percorreu todo o lado Oeste, até aos Mosteiros, onde um retornado emigrante lhe disse que o melhor seria escolher os Ginetes, porque ficava no centro de todas as freguesias. E assim aconteceu.

A freguesia dos Ginetes, talvez seja das muito poucas em S. Miguel, que não tem vista para o mar, o longo mar do Oceano Atlântico . Ela está implantada num grande vale de vários hectares, com muitos terrenos de cultivo de milho e naquele tempo, na minha rua, só existia a "casa cor-de-rosa" e mais adiante, a do meu tio Assis, do mesmo lado. Na foto baixo, só se consegue ver uma parte da realidade e ela foi tirada de cima do grande morro, que separar os Ginetes, do Oceano Atlântico.

Por todos os lados, eram terrenos separados por combros, de vários donos, onde as parelhas de bois, lentamente mas possantemente, iam puxando os arados que reviravam a terra fofa , enquanto os estorninhos ávidos de minhocas, esvoaçavam alegremente aos pés dos lavradores, sempre a mudar de sítio, na procura das grandes minhocas que eram postas a descoberto pelo arado. Eles eram aos milhares, muito parecidos com melros pretos, mas não cantavam nem ninguém lhes fazia mal.

Aqui e mais além, outras belas casas só serviam para férias de verão, de pessoas mais abastadas de Ponta Delgada, que também encontraram nos Ginetes a terra ideal, para as suas férias e alguns eram donos daqueles terrenos de cultivo, onde o milho alcançava mais de 2 metros de altura, com 3 e 4 massarocas enormes em cada pé. Para que cada pé conseguisse aguentar tal peso, tinham o diâmetro dum pulso de adulto, e estavam todos dispostos por forma a que se pudesse andar por entre eles, como numa floresta cheia de árvores... e nós corríamos entre eles, miúdos, mas ficando com a cara toda arranhada pelas folhas... quando não descascávamos um pé, para chupar, como se de uma enorme banana se tratasse... e se aquilo era doce...mais parecia "cana de açúcar".

Pela altura da sua apanha, o operariado ia arrancando as massarocas e transportando-as para um carro de bois, dotado de sebe alta. Depois eram descarregadas junto duma armação, chamada Granel, e se tirava só parte da folhagem, que era "rasgada" ao meio, com um grande prego aguçado, e se pendurava no granel, onde ficava todo o ano, à chuva e ao Sol. Durante o ano, as mais secas eram totalmente despidas do resto da sua folhagem, para serem debulhadas. O seu milho era então levado às moagens para serem transformado em farinha.

Julgo que ainda hoje, por ser tão fértil este milho, quase só existe o enorme pão de milho e aqueles pãezinhos em que se misturava açúcar e eram a nossa alegria.

Por isso, o granel teria de ter uma forma cónica e as massarocas faziam de telhas.

Um destes visitantes, o José Manuel Raposo, deve ser o actual dono da "casa cor-de-rosa" e ele tinha de tudo o que era bom, incluindo umas belas espingardas de ar comprimido, que nos emprestava, de tempos a tempos, e foi com ela, que tanto eu como meu irmão Carlos Mar, aprendemos a fazer a pontaria e disparar. E se ele era bom naquilo !

No seu "char-a-banc", quase todos os dias, ora para nascente, Candelária ou Feteiras, ou para poente, Várzea , Mosteiros e Lagoa das 7 Cidades, lá ia meu avô , troc,troc,troc, ver os seus doentes.

Embora o "Char-a-banc" (carro com bancos) de meu avô, só tivesse duas rodas

e sem capota, também podia levar umas 6 pessoas, frente a frente, como aqui, em que as pessoas entravam por uma portinhola na traseira, e lá se iam assentando de forma a que o máximo peso, caísse sobre o rodado do carro. Era como nos aviões, em que os pesos são distribuídos de forma a manter o veiculo bem equilibrado.

A "casa cor-de-rosa" estava realmente muito bem assente no meio daquele vale, mas o seu dono, seu amigo Chalupa, nunca vendeu o terreno a meu avô. Assim, a casa estava feita em terreno alheio, mas ele não teve outra escolha ! As pessoas daqueles tempos, eram muito agarradas às suas coisas e às suas memórias.

E não se vê o mar, porque existe uma montanha entre o extenso vale e ele, montanha que mais parece um enorme ginete (cavalo) deitado. Talvez por isso, a freguesia teria ficado chamada de Ginetes, mas há muita confusão sobre a palavra.

Como a "casa cor-de-rosa" está, uma grande parte do tempo, sem ninguém, ela serviu durante algum tempo à Junta de Freguesia, e a sua parte debaixo, esteve a ser usada pelos escuteiros do sítio, o agrupamento 1065 e, à sua frente, a Escola Carlos Bettencourt Leça (meu avô), que lecciona até ao 9º ano, toda a juventude, desde os Mosteiros às Feteiras, e 7 Cidades. Depois de tantos anos, continua a ser o centro nevrálgico de toda aquela zona.

Neste subterrâneo, podem ver-se e apalpar-se os milhares de blocos de pedra dos alicerces, como se, de enormes tijolos se tratassem.

Quando em 1900, a terra foi agitada com a chegada de meu avô, também lá apareceu um seu amigo íntimo, pessoa robusta, vinda da Maia, e que era o farmacêutico, o Sr. Moniz, pelo que a «Pharmácia» passou a ser não só para medicamentos, mas também Central dos Correios e uns anos depois, de telefone, o único que lá existia, em 1936. Era ao mesmo tempo, o sítio onde se reuniam para boas conversas, as pessoas mais gradas da terra.

Este Sr. Moniz, foi o pai duma distinta família Vargas Moniz, onde 4 filhos, eram visitas habituais da nossa casa, e amigos íntimos da mocidade da minha mãe. A sua morte prematura, com 48 anos, fez com que a sua família, se tivesse de ir embora dos Ginetes, para a Ribeira Grande, passando por Ponta Delgada, mas ao passar o cortejo fúnebre em frente ao Liceu, os cavalos estancaram e dali não queriam sair... Essa situação estranha, foi interpretada como um chamamento Divino, para que os filhos se interessassem pelos estudos, o que foi conseguido, pelas gerações seguintes e até hoje. Só por curiosidade, um dos bisnetos deste "Pharmaceutico" Moniz, hoje Eng. Químico em Almada, Jorge Vargas Moniz, ao descobrir estas histórias do meu Blog, se tem mostrado interessadíssimo em conhecer toda a sua família de então, e o ambiente que então se vivia.

Um destes 4 filhos, o Rogério Vargas Moniz, chegou a Director Técnico do Arsenal do Alfeite, e que deu origem neste Blogue, ao artigo "Meu amigo Eng. Rogério Vargas Moniz", publicado em 25/3/2007, e outro irmão, o Jacinto Vargas Moniz, um importante médico obstétrico em Lisboa.

A freguesia dos Ginetes é ladeada de enormes e profundas GROTAS, impenetráveis, devido à imensa vegetação, lugares paradisíacos, onde a mão do homem só lá tem entrado, para ajudar a admirar a sua beleza !

A nossa televisão, a TVI, tem aproveitado a sua estadia em S. Miguel, onde filmou uma tele-novela a que deu o nome de "Ilha dos Amores", muito bem feita e interpretada genialmente por muitos artistas do Continente. Talvez que a "Mariana" tenha estado aqui, descalça e alegre, nesta grota, tomando banho.

Como já referi, a "casa cor-de-rosa" tem um subterrâneo a toda a extensão da casa, embora com uma parede de reforço central, e que só tinha entrada pela cozinha, onde um alçapão se retirava e umas escadas davam acesso ao seu fundo. Na minha época, como não havia luz eléctrica, aquilo era escuro como breu. A luz da rua, só lá entrava, por uns pequenos gradeamentos laterais, ao nível da rua, só para manter um certo arejamento. Achei muita graça que a minha prima me tivesse aludido que o agrupamento dos Escuteiros 1065, de que ela faz parte, lá estivesse a usar este enorme salão, certamente com jogos e outras actividades, tudo bem iluminado, agora electricamente, e limpo, mas sem qualquer luz da rua. Nesta altura, já a casa está novamente devoluta, porque a Junta de Freguesia e os Escuteiros, arranjaram casa noutro sitio.

Para se ter de lá entrar, tinham de usar a porta que era da cozinha para a rua, onde está a escadaria de pedra, tendo sido fechada, certamente, a porta que dá acesso à casa "cor-de-rosa", propriamente dita.

Eles agora lhe chamam "cave", mas há 80 anos, aquilo se chamava "subterrâneo" e, só não íamos todos para lá brincar, porque aquilo até metia medo de escuro e tinha muitas teias de aranha... mas ainda me lembro de ter lá encontrado um baú velho e de onde arranquei a tampa, para fazer de barco, no enorme tanque de lavar a roupa ! E se aquilo me dava gozo ! Era o meu "navio" , embora me deixasse o rabo todo molhado...

Tinha eu uns 6 ou 7 anos...

Foi uns anos antes desta fotografia.

Em frente à "casa cor-de-rosa" está-se a abrir, perpendicularmente, um rua, onde irá ficar o Corpo de Bombeiros. Já estou mesmo a ver; quando o quartel dos Bombeiros lá estiver, mesmo em frente à "minha casa", quando houver toque a rebate...nunca mais haverá lá, quem pregue o olho, e lá se vai o silêncio idílico dos Ginetes... Progressos ...hi hi hi

Como os Ginetes estão mudados !

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