sábado, 7 de julho de 2007

E CEGOU DE TRISTEZA...

Durante muitos anos, sempre julguei que a expressão "cegar de raiva", seria uma força de expressão, mas depois de ter conhecido os meus familiares mais antigos, vim a saber que não: poderia mesmo, ficar-se cego de tristeza !

Quando se tem a sorte de atingir uma idade avançada, como eu, aos 80 anos, e sem se querer, cada vez mais interesse se tem pelas nossas origens e isso me levou a aprofundar o historial não muito distante, da minha família e ter conhecimento de factos que estavam pouco claros ou até, alguns, desconhecidos para mim.

Isto me levou à INTERNET e lá fui descobrir coisas muito interessantes sobre os meus familiares que se começaram a conhecer na Ilha da Madeira; a família Ferraz.

Obviamente que me iria meter numa grande confusão, porque há Ferraz por todos os lados, e muito em especial no Brasil. Ná, eu teria de saber coisas mais recentes, e não ir parar a 1600 ou 1700...

Assim, e já sabendo que um meu tio, vivido em 1856 e era o dono duma importante fábrica de açúcar naquela ilha, fui encontrá-lo em "Açúcar na Madeira" e ele lá estava, logo à cabeça da página, como Severiano Alberto de Freitas Ferraz, com a sua fábrica em Ponte Nova, no Funchal ! Eu já estava em casa, no seu palácio !

Ele se tinha casado com uma senhora D. Leonor Terêncio Vieira, em 1817, e tiveram 7 filhos. Um deles, era o meu bisavô João Higino Ferraz, que ficaria a ajudá-lo na fábrica do açúcar.

Aqui o meu leitor se estará a sentir um pouco morno de entusiasmo, mas já lá vamos ao que mais importa nesta crónica, a « cegueira dada pela tristeza», mas ainda tenho umas voltas a dar...

Foi por esta altura, 1856, que um inglês, de nome W. Hinton, foi parar à Madeira e para nosso azar, foi meter o nariz na fábrica do açúcar, tendo logo depois, feito uma sociedade com maquinaria toda nova e vai de fazer uma guerra atroz a meu tio, pagando muito mais aos fornecedores da cana do açúcar, do que meu tio poderia. Para meu tio, era uma guerra muito suja, mas que poderia aguentar-se por mais algum tempo, mesmo a perder dinheiro...

Para meu tio, o Hinton tinha de estar a perder dinheiro com o que estava a pagar e isso o levou a um profundo desgosto, em especial porque não via a possibilidade de continuar a viver assim, pelo que se enfiou no escritório dias e dias e acabou por se suicidar com um tiro de pistola.

Entram em cena os credores que levam todos os haveres da família, só deixando a casa e um piano de cauda que ele havia ofertado à minha avó e que veio a ser a salvação da nossa família daquele lado.

Minha avó, Leonor Esther de Carvalho Ferraz, era a mais velha de todos, embora só com 18 anos, tinha um irmão muito meigo e sensível, um artista, e nada atraído pelas mecânicas, e que havia aprendido a tocar violoncelo com um professor irlandês que havia ido para a Madeira, à procura de se salvar duma tuberculose pulmonar, que o havia agarrado, e era este irlandês que também era professor de música da minha avó.

Assim, com tanta falta de dinheiro, e sem a possibilidade de continuar a pagar-lhe as lições de música, minha avó foi confessar-se ao irlandês das suas tremendas dificuldades financeiras, mas o professor, que já gostava muito dela, e dos seus dotes no piano, não só não lhe exigiu mais um tostão, mas também lhe começou a enviar alguns dos seus alunos.

Aquilo ia dando para viver, mas havia que fazer algo pelo irmão José Ferraz, que se andava a mostrar muito entusiasmado pela medicina e pela música, em especial o violoncelo. Só que o dinheiro não dava e lá vai o José para os Pupilos do Exército, cursar a tropa, que tanto abominava... e, às tantas, começou a cegar, perante a grande confusão da medicina de então, que foi consultada. Como já não servia para o exército, foi suspenso e voltou à Madeira, imensamente triste.

Como não se encontrava nada na vista do rapaz, aquilo só poderia ser algum grande desgosto que o rapaz teria e aí minha avó se lembrou de que ele só queria estudar medicina, curso muito caro, mas como o número de alunos havia aumentado, lhe pareceu que poderia tentar ajudá-lo a fazer medicina e assim aconteceu, vendo o José voltar a possuir lentamente, a visão.

Certamente que minha avó seria um pouco mais nova do que nesta imagem, mas desde logo muito nova, passou a ter cabelos brancos prateados que conservou até aos 85 anos. Tenho pena de não possuir uma sua fotografia aos 18 anos, mas dizia-se que era das mulheres mais lindas do Funchal...

O curso de medicina estava a exigir muito do José e, porque não possuía dinheiro para os livros, refugiava-se na biblioteca da universidade e foi aí que foi encontrar também, com sérias dificuldades financeiras um colega que tinha muita habilidade para o desenho e desde aí, os dois rapazes viriam a brilhar nos seus cursos, ajudando-se um ao outro.

Esse outro jovem madeirense, tinha uma vasta família de 12 irmãos e também a paixão pela medicina, música, desenho, mecânica, caça, etc.

Ele se chamava Carlos Abel Bettencourt Leça e havia nascido em 1870, numa pobre freguesia de pescadores, de nome Madalena do Mar, no Sul da ilha da Madeira. Este rapazão, viria a ser mais tarde, em 1927, meu avô.

Esta amizade perdurou por todos os anos das suas vidas e foi nos contactos em casa do José Ferraz, que ele veio a conhecer e admirar os dotes e coragem daquela senhora D.Leonor Esther Ferraz, mais velha do que ele 8 anos.

Mas para cúmulo do azar, o seu primeiro amor, já com a data marcada para o casamento, arranja uma tuberculose fulminante e vem a falecer poucos dias antes da data marcada para o seu casamento.

D. Leonor fica completamente destroçada e incapaz de se aventurar a novo noivado, embora sentindo que aquele jovem da Madalena do Mar, a tenta cortejar a todo o custo !

Mas a pouco e pouco se sentiu atraída pelo jovem Carlos Leça, com quem viria a casar uns tempos depois, em 1894. Foi esta distinta senhora, minha avó, mulher "de armas" que se valeu de todos os seus conhecimentos, para aguentar a família, não só ensinando inglês, português e francês, além da música, que era a sua paixão.

Na ilha da Madeira, havia muitas famílias estrangeiras que procuravam o seu dócil clima e muitas jovens procuraram na sua permanência na ilha, o meio de se instruírem.

Acabados os cursos de medicina, com os mais altos valores, o Dr. José Alberto Ferraz veio para o Continente fazer clínica, como médico Municipal em Belas, e depois em Queluz e, como era um artista em medicina e música, quando faleceu, com 31 anos, em 1921, as Juntas de Freguesia de Belas e de Queluz, deram o seu nome a várias ruas, que ainda lá estão:

Dr. José Alberto Accioli Ferraz

MÉDICO

Este médico começou a ser muito admirado como violoncelista e às tantas, foi convidado por sua Exª. o Rei D. Carlos, para fazer parte do seu conjunto de música de câmara no palácio. Quando entrei pela Internet, há pouco tempo, no interior do palácio do Rei D. Carlos, hoje Museu da Ajuda, e vi a sala de música, logo me lembrei do meu tio lá assentado a embelezar os serões de Sua Majestade.

O Dr. Carlos Leça, ficou pela Madeira, vivendo em casa da esposa, mas como ainda não era conhecido, a profissão da medicina não dava para nada e ele se sentia muito frustrado por estar a viver à custa da esposa.

Assim, um dia apareceu vaga de médico num navio de carga, a que ele concorreu e logo seguiu viagem para as Bermudas, aquele malfadado triângulo das Bermudas, tendo o navio se afundado com toda a sua tripulação...

Mas valeu ao Dr.Carlos Leça, que havia sido acometido de uma apendicite aguda e ainda estava no hospital, em terra, quando o navio se afundou.

A terrível notícia logo correu mundo e a D. Leonor Ferraz, acabadinha de casar, já se sentia viúva, quando uns meses depois, vê aparecer o seu marido são e salvo das Bermudas... viajando noutro navio.

Mas infelizmente, a vida de médico novo, continuava difícil e vai de responder a um anúncio para médico em S.Miguel, Açores, para a Maia, freguesia no norte da Ilha e lá vai ele com a sua esposa para S.Miguel, cheia de tristeza por ter deixado o seu piano de cauda, na Madeira...

D. Leonor estava agora grávida do seu primeiro filho e cada dia mais triste de não se poder deliciar ao teclado do seu magnífico piano. O seu estado de tristeza profunda, em nada estava a ajudar aquele parto...

Acompanhada de sua mãe, D. Sofia Amália de Carvalho Ferraz, esta de companhia com o seu genro, e em completo segredo, decidem mandar vir o piano da Madeira e finalmente, uns meses depois, ele chega, para grande alegria de D.Leonor e Dr.Carlos Leça.

Mas na Maia, volta a acontecer a mesma dificuldade de exercer a medicina, até porque era um povo muito pobre e é durante umas das suas visitas médicas a um doente, às tantas da madrugada, que nasce o seu primeiro filho, sem a sua presença, entregue à sogra e uns serviçais. Mas felizmente que o marido, ao chegar a casa, vai encontrar tudo em silêncio e a sua esposa a dormitar, bem como o filho, a quem foi dado o nome de Francisco Assis Ferraz Bettencourt Leça.

Muitos factos desta história, foram respigados dum belo escrito intitulado "A família Ferraz", duma minha irmã, a Leonor Ferraz Bettencourt Leça Faria, hoje com 78 anos, nascida em 1928, a quem presto a minha homenagem e Maria Antónia Accioli Ferraz.

( Maria Leonor Ferraz B.Leça Faria )

Daquela Leonor Esther Ferraz, houve um irmão de nome João Higino Ferraz Jr., que dado o seu entusiasmo pela rádio, viria a ser um grande telegrafista como radioamador, com indicativo CT3AB e ultimamente o mesmo indicativo foi herdado pelo seu filho Henrique Eduardo Clode Ferraz, falecido há poucos meses.

Na foto, João Hygino Ferraz em visita ao Dr.Calos Leça, há 78 Anos, em S. Miguel.

A partir desta crónica repleta de tantas tristezas e alegrias, já o leitor pode saber a sua continuação, na crónica que se segue, "A casa cor-de-rosa", e ficou a saber que uma grande tristeza, também pode dar como resultado uma grande cegueira.

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