sexta-feira, 27 de julho de 2007

UM AÇORIANO ABANDONADO EM LISBOA...

O leitor deste Blog, já deve estar um tanto farto de ver esta cara alegre e prasenteira, mas ela não mostra nada, o que este garoto de 13 anos, estava a viver e até pode parecer que vivia feliz e contente, tratado com todo o carinho.

A verdade era muito outra !

Nascido e criado até a esta idade, numa respeitosa família açoriana de S.Miguel, rodeado de carinho de toda uma família feliz, acabou por ter de ser "exportado" dos Açores para o Continente, porque toda a sua família se estava a desmoronar...

Meu pai já tinha morrido, de tuberculose e diabetes, com 47 anos, quando eu tinha 11 anos e deixou a minha mãe em profundas dificuldades financeiras. Entretanto o "Rei" da nossa casa, médico, meu avô, o adorado Dr. Leça dos Ginetes, acaba por falecer de angina de peito, aos 73 anos e, como estava marcada a minha "exportação" para esse mesmo dia, só o pude beijar, já morto, mas deitado na cama onde faleceu, com cara sorridente, como se estivesse simplesmente a dormir, com a sua cara deitada sobre a sua mão esquerda. Mais um profundo desgosto !

Minha mãe, ainda conseguiu tirar o curso de Regente Escolar e estava a dar aulas, uns tempos antes, numa freguesia ali perto, embora tivesse de andar a pé uns quilómetros diários, para lá chegar. Com o vencimento de 250$00 mensais, aquilo não dava nem para os sapatos que os seus 5 filhos gastavam...e meu avô também tinha deixado minha avó em séria situação financeira, pelo que não nos podia ajudar...

Assim, resolveu procurar emprego em Lisboa, o que conseguiu na Santa Casa da Misericórdia, exactamente onde se faziam as extracções dos Jogos Santa Casa, e lá conseguiu enfiar as minhas irmãs, num colégio interno de freiras, ali perto do seu emprego.

Fiquei eu e meu irmão, à deriva, sem eira nem beira, à procura de sítio onde viver, mas o ordenado da mãe quase não dava para nada e foi o pior tempo da minha vida, pois tinha de estudar e ir fazendo alguma coisa para poder comer um bolo ou beber um copo de leite. Pessoa amiga, que tinha filhos mais ou menos da minha idade, mas também estavam em dificuldades, fazia os filhos pegar em molhadas de revistas, que ainda me lembro se chamava FLAMA, e vai de alombar com elas para a porta duma Igreja, lá para os lados do Marquês de Pombal. E ali ficávamos um bom bocado a apregoar a revista. Por cada revista vendida, davam-nos 50 centavos, mas com um pouco de habilidade e cortesia, sorriso estampado na cara, eu sempre conseguia vender mais do que os outros e ficava todo feliz, por poder juntar uns cinco escudos ou pouco mais, o que já dava para poder comer mais alguma coisa numa taberna qualquer, das mais baratinhas...

Depois acabei por arranjar mais um "emprego" numa casa que fabricava candeeiros, ali para a rua da Vitória, 46-48, no meio da baixa, e tanto tinha de andar a pé, por Lisboa inteira, para receber facturas atrasadas, subir e descer imensas escadas, para depois levar com a resposta de que lá fosse noutra altura...ou ter de alombar com enormes candelabros cheios de pingentes, e que só podiam ser transportados ao ombro, perante o tilintar chato daqueles vidrinhos todos, com toda a gente a olhar com cara de gozo. Mal sabiam eles que aquele pobre garoto açoriano, estava a fazer um sacrifício dos diabos, para poder comer um pastel de bacalhau como almoço... e ainda tinha de estudar para à noite, ir pegar a Escola Marquês de Pombal, lá para casa do Calvário. Aquilo era mesmo um calvário !

Mas um dia, minha mãe encontrou uma rapariga que tinha sido sua criada, quando dos tempos áureos, mulher ainda bem bonita e que nunca havia vestido farda, o que muitas vezes provocava em minha mãe ataques de histeria, porque quando ia à porta, e sendo tão bonita, toda a gente julgava que se tratasse da minha mãe...

Gozava a criada e enfurecia a minha mãe, está claro ...

Mas este "senhora" vivia ali perto da Misericórdia de Lisboa, numa casinha muito modesta do Bairro Alto, mas cheia de boa vontade, lá me arranjou um cantinho na casa, com uma mesa e cama, mas havia colocado uma cortina a tapar o resto do quarto.

Mal eu sabia, que ela se tinha tornado prostituta e dificilmente eu conseguia dormir, com tantos ais e isss, gemidos e palavrões, das suas "visitas" ! E logo eu, que nem sabia o que era uma prostituta, nem de longe nem de perto... e até lhe tinha muito respeito !

Mas a minha mãe, que também não sabia nada daquilo, lá nos empurrou para a Av. Almirante Barroso, ali para os lados do Arco do Cego, e albergou-me a mim e meu irmão Carlos, no mesmo quarto.

Felizmente que, com a ajuda dum outro açoriano, de S.Miguel, amigo de infância da minha mãe, e era engenheiro no Arsenal do Alfeite, de nome Vargas Moniz, nos conseguiu lá plantar os dois. Nós éramos os "Farias" e tratados com muito deferência, pois toda a gente sabia que éramos protegidos do patrão!

Aquilo até podia ser pior, mas era muito chato ter de ir apanhar o eléctrico às 7 da manhã, para o Cais do Sodré, todas as manhãs, para apanhar a corveta da Administração, que nos transportava para o Arsenal do Alfeite, do outro lado do rio Tejo. Á tarde, a corveta "despejáva-nos" no Cais do Sodré e lá íamos os dois de eléctrico comer qualquer coisa e depois eu teria de ir novamente de eléctrico para S.Amaro, mesmo do outro lado de Lisboa, para a Escola Industrial.

A alimentação no refeitório do Arsenal, até não é que fosse má, mas ficava muito caro para a nossa bolsa. Assim, tínhamo-nos de contentar com qualquer coisinha que ia eu buscar ao "guichet" , porque meu irmão preferia ficar sem comer, do que ir para a bicha, de braço estendido...

Infelizmente, em casa, mal podíamos comer, porque ainda era cedo para os donos da casa e muitas vezes só "bebia" uns golos de água quente com umas nabiças a flutuar, ao que chamavam de sopa...para ir apanhar o eléctrico para Santo Amaro.

Aquela falta de descanso e de comida suficiente, não me podia deixar ir muito longe e, um dia, tendo ido a uma praia do Seixal, deixei-me dormir, estampado ao Sol, mas quando acordei, nem me conseguia por de pé... Assim, fiz todo o percurso a pé, imensamente cansado, a empurrar a bicicleta, pois nem força tinha para a montar e pedalar.

Meu irmão grande entusiasta pelas coisas científicas, estava a experimentar fazer exames microscópios num aparelho por ele construído e observando a minha expectoração, logo verificou que eu estava muito doente com bacilos de Koch, embora o médico julgasse que se tratava duma simples gripe, mas perante o ensaio do meu irmão Carlos Mar, achou por bem mandar fazer um exame mais exaustivo e confirmou-se a doença... aquela malvada doença com que havia morrido meu pai uns anos antes, doença de terríveis e demorados anos de tratamento e foi por isso que fui "exportado" para o hospital do Desterro e onde se passaram os episódios rocambolescos, que descrevi no artigo "Chateado pelos ácaros".

Mas dado o saber da terrível possibilidade de contágio da doença, logo exigi que houvesse o máximo cuidado com tudo o que me dizia respeito e, felizmente, nenhum dos meus irmãos foi contagiado.

Felizmente que logo me arranjaram forma de ser "exportado" agora para um Sanatório do Caramulo, levando a tiracol a minha máquina fotográfica...como se fosse passar umas férias na montanha...o que tanto gozo deu à malta que me viria a conhecer. Mas só, ao fim de um ano de penoso tratamento de pneumotóraxes, é que os bacilos de Kock foram desactivados e comecei, muito lentamente, a ganhar vida, enquanto ia vendo muitos outros, da minha idade a socumbirem à terrível doença.

Tive o "desplante" de me vir "despir" aqui em público, pensando em tantas crianças da minha idade, que, por este ou aquele motivo, rodeadas de tudo o que é bom, com uma boa casa para viver, rodeadas de amor e carinho dos pais, não se alimentam convenientemente, e acabam também por adoecer, mas talvez não tendo a sorte e vontade que eu tive de me curar, embora tivesse de fazer um tratamento por 5 anos...

E quando vos apetecer fazer alguma asneira das grandes, lembrem-se daquele puto açoriano, de 13 anos, o Mário, que vocês conheceram via Internet.

Hoje, perto dos 80 anos e olhando para trás, não posso ter saudade alguma da minha mocidade, em especial desde o momento em que toda uma família se começa a desmoronar, como pode acontecer a qualquer um, e sentindo uma imensa vontade de viver, dou graças a Deus de ainda estar vivo e poder relembrar aqueles tempos tão distantes da minha mocidade tão amargamente e estupidamente perdida...e sem ser por minha culpa...

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