sexta-feira, 6 de junho de 2008

AMANHÃ JÁ NÃO TENS AVÔ...

Eu já sabia que aquele meu tão querido avô, não andava bem de saúde, há algum tempo e, nas suas cartas para o Continente, onde eu já estava a viver, ele já ia dizendo que estava a findar a sua estadia em S.Miguel, nos Açores, até porque já lá não estava a fazer nada, e só pensava em vir viver para Lisboa.
A sua vida estava no fim, e a sua maior paixão, seria de poder vivê-la junto de nós, em Portugal.
Assim ele me ia contando que já se havia desfeito do seu belo carrinho, a que ele chamava "as minhas pernas", e até iria vender a sua casa, aquela "casa-cor-de-rosa" de que tantas vezes falei neste meu blog !


Aquela casa, onde tanta alegria tinha havido, com tanta gente feliz e o seu velho piano sempre a tocar dia e noite, já nada lhe dizia, nem à minha avó, que também já havia perdido muito da sua intensa habilidade para o tocar.
Já não se ouvia a flauta, nem o cavaquinho da Madeira, nem a sua viola, que ele tocava, nem aquela valsa que ele tão bem tocava ao piano.
Tudo se estava a desmoronar !
Um amigo ajudou-o a fazer os cálculos para ele saber o quanto valeria a sua casa, mas como o terreno tinha sido alugado, nem ela valia quase nada... Teria de abandonar S.Miguel, quase na miséria...
Embora só tivesse 73 anos, já nem as suas visitas aos seus doentes, lhe interessavam muito e já nem tinha grande paciência para sair a pé, montanha acima, montanha abaixo, vendo que as pessoas já nem podiam pagar-lhe as avenças de que ele tanto necessitava para sobreviver.

Como eu o amava e admirava !

Dos seus 7 netos, toda a gente dizia que eu era o que mais me parecia com ele, e isso me causava grande alegria, embora ele fosse fisicamente de aspecto muito robusto, mas elegante, sempre vestido a rigor e bem perfumado ! Eu tinha imenso orgulho naquela figura, e ele sentia isso !

Quando tive direito a férias, resolvi voltar a S.Miguel, para matar saudades daqueles tão adoráveis velhotes, e poder estar mais algum tempo ao seu lado, mas fui encontrá-lo muito debilitado, incapaz de se mover sozinho e até eu o tinha de transportar ao WC, acompanhado dum criado que já lá estava há muitos anos, e o agarrava pelo outro lado, porque ele já não podia fazer nada sozinho, nem para se lavar e limpar !
Que pena eu tive de o ver assim, naquela casa tão sombria e silenciosa, sem ouvir sequer a voz da minha avó, que muito calada, por ali andava tão preocupada com o que estava a assistir, pois se meu avô não melhorasse, não podia já pensar em vir viver para o Continente, para junto da sua amada filha, a minha mãe, os seus últimos dias de vida...



Aquela minha linda avó, que sempre se mostrava sorridente para toda a gente, andava agora, com aspecto muito sombrio, embora sempre linda, com uma pele acetinada, embora já rondando os 80 anos !
E só recordo de assistir às "fúrias" de meu avô, quando depois de ter levado uma hora a escrever à máquina algum documento oficial, e ela o lia muito cuidadosamente, lhe dizia: olha que Farmácia já não se escreve com "PH", nem Gaiacol como "guayacol", nem pele como "pelle", nem aplicação como "applicação"... e lá ia ele, praguejando acerca da "malvada" revolução ortográfica...

Mas eu queria saber o porquê do estado de saúde do meu avô e ela me contou que numa noite de inverno, ele havia sido chamado de urgência, à linda Lagoa das 7 Cidades e toda a viagem teria de ser feita a cavalo, cumieira acima e depois cumieira abaixo, mas a corta-mato, para ser mais rápido, em que o dono do cavalo o levava à mão, munido duma velha lanterna, por entre toda aquele luxuriante vegetação. Aquela noite estava realmente, imensamente escura ! Parecia de breu !

Meu avô embora fosse um grande cavaleiro, porque durante muitos anos, fazia as suas visitas médicas a cavalo, ia assentado de lado sobre uma albarda, mas às tantas, ao dar-se uma guinada rápida para fugir a um obstáculo inesperado, meu avô cai de costas, com grande sofrimento, pois mal podia respirar...
Mesmo assim, mas agora a pé, gemendo de dor, tossindo e cuspindo, lá foi andando cumieira abaixo, até à freguesia onde a doente o esperava, na sua grande aflição para ter um parto.
Felizmente, para ela, mesmo com meu avô perante tão grande dificuldade para respirar, lá conseguiu por o bebé cá fora, são e salvo, mas já sem força para caminhar, só quando chegou o dia, arranjaram para transporte, uma carroça vulgar e sem comodidade alguma, além de que meu avô já tinha sentido o gosto terrível de sangue na boca e estava a cuspir sangue !
Algo de muito grave lhe teria acontecido e ele já pensava numa costela partida e que lhe estivesse a perfurar um pulmão.


Aquela seria a sua última viagem àquele santuário da Natureza, aquela linda Lagoa das 7 Cidades, que ele havia visitado centenas de vezes, no cumprimento dos seus deveres clínicos.

Mas o pior ainda estava para vir, pois começou a ter imensa falta de ar e gritava para que lhe abrissem as janelas de par em par, para poder respirar melhor... estava com uma angina de peito !
Minha avó logo foi ao telefone, telefonar ao médico mais próximo, um tal Dr. Pavão, que fazia clínica a uns 5 Km de distância, na Várzea, que passados poucos minutos, já estava a pedir a meu avô para arregaçar a manga do pijama para lhe dar uma injecção (?), mas eu nunca tinha visto uma coisa assim... parecia que meu avô tinha o braço cheio de minhocas ou cobras por baixo da pele que se ondulava toda e gritava para que o colega acabasse com aquilo depressa.

Um minuto depois, realmente sossegava das crises de falta de ar e finalmente acalmava.
Ele era muito bom médico, mas um terrível e pavoroso doente... pelos vistos, nem podia ver uma agulha que o fosse picar !
Por outro lado, este médico, muito mais novo do que ele, havia feito uma propaganda muito assanhada contra a medicina que meu avô sabia, e que ele é que tinha muitas "cadeiras de universidade", que meu avô não tinha.
Aquilo era assim naquele tempo; os médicos tinham de ter uma espécie de "peão de brega" que ia pelas terras fazendo a sua propaganda e à caça de mais clientes, certamente dizendo mal dos outros...
Uns anos antes, em que meu avô sempre brincalhão, viu uma carroça passar na rua, e carregada de cadeiras, me disse: Olha ali vão as "cadeiras" que o Dr. Pavão diz que tem a mais do que eu ...
Mas agora, já não podia brincar mais, até porque estava nas suas mãos.

Eu entretanto, levava todo o tempo deitado a seu lado, vestido, lendo-lhe as notícias dos jornais, iluminado por um bom candeeiro de acetilene. Infelizmente, os 15 de férias a que eu tinha direito, estavam a acabar e já estava marcada a minha viagem de regresso, para o dia seguinte.
Minha avó, como sempre muito exacta em tudo o que fazia, a ponto de estar de relógio na mão, para saber quando teria de nos dar um remédio crítico, de 6 em 6 horas, me veio lembrar de que eu me devia ir deitar, porque a camioneta que me levaria para Ponta Delgada, passava lá nos Ginetes, muito cedo.
E foi aí que eu ouvi meu avô dizer: amanhã, já não tens avô !
Mas como ele estava muito calmo, eu lhe disse: "Nem pense nisso! Agora que já está tão bonzinho..." o beijei na mão pedindo "a sua bênção" e me fui deitar.
Era muito cedo, umas 6 da manhã, quando sinto minha avó chamar-me para me levantar , e dizendo até que o meu avô já tinha falecido!
Eu nem queria acreditar no que estava a ouvir e num repente, estava a olhá-lo, deitado de lado com a sua cara deitada sobre a sua mão esquerda e a outra sobre o peito. Era a posição em que o tinha deixado na véspera.
A sua expressão até era sorridente, parecendo que estaria a dormir, pelo que baixinho, para não o acordar, perguntei à minha avó: Mas ele está mesmo morto ? Parece tão feliz...
Mas ela acenou-me com a cabeça que sim, embora eu não visse nem uma lágrima naqueles olhos...
Até me pareceu que estivesse feliz por saber que ele não iria sofrer mais. Ela era muito forte e encarava estes factos com absoluta normalidade.
Realmente ele estava muito frio e me senti todo arrepiado e me afastei, pois havia que tomar o pequeno almoço e seguir viagem para a cidade, onde iria apanhar o navio Carvalho Araújo.
E assim, nem assisti ao seu enterro.
Segundo me contaram depois, teve um enterro miserável, com meia dúzia de pessoas que talvez ele tenha ajudado a pôr neste mundo ou salvo a vida.
Em contrapartida, a morte de meu pai, que tão pouca gente conhecia, uns 5 anos antes, havia levado aos Ginetes, centenas e centenas de pessoas, e até a banda de música Filarmónica Minerva, ia tocando a marcha fúnebre, aquela banda que meu avô havia fundado uns anos antes.

Poucos meses depois, chegava a Lisboa a minha avó Leonor Ester Ferraz Bettencourt Leça, e que sempre muito lúcida, veio a falecer aos 85 anos, depois de um AVC seguido de coma, em que só se sabia que ainda estava viva, porque o rosário que tinha nas suas mãos, passava uma bolinha, de quando em quando, até que parou, por se ter "apagado".
Eu não assisti, porque nessa altura, estava num sanatório do Caramulo, a brigar com a morte que me queria levar aos 20 anos, e de que graças a Deus me livrei, até hoje.

23 comentários:

Anónimo disse...

Olá Mário! Afinal sempre surgiu mais uma memória depois de nos ter "ameaçado" que já não tinha mais para dizer :))
Ficámos a saber como eram esses tempos tão difíceis e como na vida vamos assistindo à derrocada do encanto das crianças nas casas dos avós.
Todo o texto transpira bem esse desencanto, esse medo, essa tristeza...
Mas a vida é mesmo assim e felizes aqueles que têm tão gratas memórias para recordar.
Beijinhos

Escrito por: ana ramon em 2008/06/08 - 10:31:14

Mário Portugal Leça Faria disse...

Para conhecimento de todos os leitores, publica-se abaixo os 21 comentários publicados no site brasileiro Lima Coelho "http://www.limacoelho.jor.br/vitrine/ler.php?id=1484" a propósito deste post "Amanhã já não tens avô"

Anónimo disse...

Mhário, sou um apreciador de suas crônicas

Comentário Enviado Por: Tocantins
Em: 14/6/2008

Anónimo disse...

Um primor de memória

Comentário Enviado Por: Martha Vilarinhos
Em: 12/6/2008

Anónimo disse...

Oi Mário, obrigada amigo

Comentário Enviado Por: Betina
Em: 11/6/2008

Anónimo disse...

Muito bem Mário

Comentário Enviado Por: Xicó
Em: 11/6/2008

Anónimo disse...

Gostei muito. Alías, sou fã de suas crônicas

Comentário Enviado Por: Adélia Rocha
Em: 10/6/2008

Anónimo disse...

Gostei muito. Parabéns

Comentário Enviado Por: Sinvaldo Lopes
Em: 09/6/2008

Anónimo disse...

Mário a leitura de tuas crônicas me trazem muitas lições

Comentário Enviado Por: Alcides
Em: 09/6/2008

Anónimo disse...

Oi Mário, como você tem uma memória irreparável.

Comentário Enviado Por: Talita
Em: 09/6/2008

Anónimo disse...

Mário que crônica. Até parece que eu estava vendo tudo ao ler

Comentário Enviado Por: Wilma Mangabeira
Em: 08/6/2008

Anónimo disse...

Mário a sua memória é invejável, meu amigo

Comentário Enviado Por: Vicente Rogedo
Em: 08/6/2008

Anónimo disse...

Muito bem, meu amigo. Suas crônicas de memória são um deleite

Comentário Enviado Por: Pedro Antero Quintão
Em: 08/6/2008

Anónimo disse...

Bravo, Mário!

Comentário Enviado Por: José Vieira
Em: 08/6/2008

Anónimo disse...

Mário, que Deus o conserve sempre com memória tão boa para nos brindar com belas crônicas

Comentário Enviado Por: Zuíla Teixeira Rosado
Em: 08/6/2008

Anónimo disse...

Que memória tem o Mário! Admirável

Comentário Enviado Por: Gilda Abreu
Em: 08/6/2008

Anónimo disse...

E aí, Mário, beleza?

Comentário Enviado Por: Sônia Weissheimer
Em: 08/6/2008

Anónimo disse...

Valeu, Mário

Comentário Enviado Por: Vera Peixoto
Em: 07/6/2008

Anónimo disse...

Um alento, é o que sinto a cada nova crônica do Mário

Comentário Enviado Por: Ibrahim Moura
Em: 07/6/2008

Anónimo disse...

Triste, mas impressiona-me o veio memorialista do Mhário

Comentário Enviado Por: Bernardo Ribeiro Lima
Em: 07/6/2008

Anónimo disse...

Que memória encantadora tem o Mário

Comentário Enviado Por: Laura Antunes
Em: 07/6/2008

Anónimo disse...

É uma linda crônica Mário. Meus parabéns!

Comentário Enviado Por: Ana Terra
Em: 07/6/2008

Anónimo disse...

Muito bem, Mário.

Comentário Enviado Por: Ribamar Muniz
Em: 10/6/2008