sábado, 12 de janeiro de 2008

E ERAM NECESSÁRIAS SEIS MÃOS


Uma idade por que passei, onde mais a memória me ocorre, foi a da minha Instrução Primária e, por isso, 1933/34 , quando eu tinha 8 ou 9 anos ! Até me parece agora, a idade mais linda que uma pessoa pode ter !

Na nossa casa "cor de rosa", nos Ginetes, ilha de S. Miguel, Açores, tinha um enorme piano de cauda, que tocava todo o dia, porque toda a gente tocava nele, uns a estudar escalas para cima e para baixo (o que era muito chato de ouvir...) e outros a aperfeiçoarem as músicas já conhecidas, a dar-lhes mais cor, mais sentimento, mais perfeição.
Mas às vezes, juntava-se ao teclado a minha avó nos graves, minha mãe no centro e minha irmã mais velha, a Manuela, nos agudos, pois embora só tivesse 9 ou 10 anos, já conseguia tocar por música, embora para tal, tenha levado uma data de puxões de orelhas, de cada vez que "metia água"... ou dava fífia...
Eu assistia àquilo tudo e até me divertia, quando via seis mãos em cima do teclado a tocar os trios com tanta graça ! 30 dedos a tocar... era muito dedo junto !
Era nestas alturas que eu ficava extasiado a assistir àqueles 30 dedos a rodopiar sobre o teclado e até, nalgumas passagens, uma delas tinha de ir tocar nos sítios dos outros, havendo uma troca de mãos e braços, que me fazia muita confusão... mas aquilo era mesmo assim e eu até achava graça.
Quando eu me achava por perto, prestando muita atenção àquilo que elas estavam a tocar, por vezes pediam ajuda para voltar as páginas o que eu fazia quando a minha mãe dizia "volta", e dada a minha curiosidade, lá fui aprendendo, e mais tarde sem que elas me chegassem a dizer aquela "palavra mágica" "VOLTA", já eu estava com os dedos na nova página, pronto a voltá-la, mesmo sem perceber nadinha de música...

Isso levou a que minha mãe me perguntasse como é que eu tinha adivinhado, mas só por ver aquelas "bolinhas" para cima e para baixo, em cima daquelas 5 linhas horizontais, (a pauta) embora só tivesse 8 anos, eu lá ia acertando, até que me deixaram de dizer "volta"...
Mas um dos trios, o pianista do meio, até nem tinha muita complicação de notas e assim, depois de elas terem de ir às suas vidas, eu me assentava ao piano e ia brincar um pouco com aquelas notas centrais, porque minha irmã Manuela, que era um ano mais velha do que eu, me havia dado algumas explicações das pautas e que notas queriam dizer aquelas "bolinhas" que estavam em cima da pauta (era mais uma palavra a aprender)
Aqui é o DÓ, aqui é o RÉ, aqui é o dó Sustenido (outra palavra a aprender e que era meio tom, entre o DÓ e o RÉ) etc, etc, e eu já sabia que depois de contar 8 teclas, lá voltava a ser dó novamente, mas aquilo que ela me dizia, era ser uma OITAVA acima e quando contava para o lado dos graves, era uma oitava para baixo...
Assim, se estava a tocar o RÉ e se desejava baixar meio tom, aquela tecla preta, que era o Sustenido do DÓ, agora se chamava o BEMOL de RÉ.
E ela até trauteava as "bolinhas", a que chamava Solfejo. Assim, às tantas eu até já conseguia cantar o solfejo e me fui adaptando ao seu som.
E não é que até era giro ????
A certa altura, mesmo sem olhar para as "bolinhas" eu já conseguia cantarolar qualquer coisa e as podia ir tocar nas teclas...
Aquilo era mesmo giro de verdade !
Mas quando eu tinha de ir para a pauta debaixo, a que ela chamava de "clave de FÁ", lá estava eu todo baralhado... Mas que raio de coisa aquela de "claves de SOL" para a mão direita e "claves de FÁ" para mão esquerda... se me pareciam tão iguais ?
Mas brincando, brincando, às tantas ela me diz que eu até poderia substituir a minha mãe no centro do piano, e para tal, teve de alterar a pauta, senão eu teria de ir tocar onde já não me pertencia, ou seja, na "casa" da pessoa do lado...
Assim, comecei a treinar só aquelas teclas do centro, mas constatei que com as mesmas notas, podia até tocar outras músicas... que coisa gira !
Um certo dia, estava minha avó a dar lição de inglês a uns meus primos mais velhos e minha mãe, que tinha estado a ouvir-me brincar com o piano, veio dizer-me que ela, eu e a minha irmã, já poderíamos tocar o trio...
Eu nem queria acreditar que pudesse ser duas daquelas 6 mãos, mas muito nervoso, lá nos assentámos os 3 ao piano e me pediram para ter muita atenção ao Andamento, para não sair do Compasso e ir mais depressa ou mais devagar que os outros...Era uma grande bronca ! "Compasso", outra palavra a aprender...
Claro que não foi de caras, mas agarrado à paciência das minhas companheiras e professoras, lá entendi quando tinha de entrar e onde teria de respeitar as pausas, etc.
Como eu era muito pequenino, e nem chegava aos pedais do piano, minha mãe é que o pisava e largava.
Ás tantas, eu já nem olhava a pauta, porque já tinha a música de cor e até salteada...
O raio do trio, era em tom de FÁ, relativamente pouco usual, (segundo vim a saber mais tarde) mas quando eu estava sozinho ao piano, conseguia transpor para aquele tom, muitas melodias que já conhecia.
Foi outra surpresa para mim, entender que podia transpor para FÁ MAIOR ou MENOR, uma data de musiquinhas e sem as estragar, e nunca mais parei.
Mas havia daquelas músicas que eram tocadas em FÁ MENOR e assim aprendi que somente duas novas notas, eu podia saltar para o MENOR e o som era completamente diferente e muito mais agradável para o meu ouvido.
Aí cheguei à conclusão de que quase todas as músicas românticas, aquelas de que eu mais gostava, eram tocadas em TOM MENOR, como as muito cantadas pela brasileira Maysa Matarazo.


Mas o mais interessante foi o descobrir que quase todas as notas que eu tocava com a mão direita, as podia tocar uma a uma com a mão esquerda, e só não podia tocar uma oitava, porque as minhas mãos eram pequeninas. Tinha de ser só com um dedo ! Era um palmo dos curtinhos...
E mais, havia descoberto que além desta nota linda muito grave, eu podia repetir com a mesma mão esquerda, algumas das notas ou até todas, as que estavam mesmo ao lado da mão direita, à sua esquerda e que estavam a fazer a Melodia, outra palavra que viria a aprender.

Aquilo cada vez ficava mais bonito de ouvir e até meu avô, que não gostava que ninguém lhe fosse bater nas teclas do piano e estragar a sua afinação...que ele tinha de reafinar, começou a vir-me ouvir tocar e até me alisava o encaracolado cabelo que minha mãe nunca quis mandar cortar e durante muitos anos.
A certa altura, eu não podia ficar quieto, ao pé dum piano...
Uns anos mais tarde, já com uns 14 ou 15 anos, cada vez eram mais as músicas que eu conseguia tocar e foi uma "doença" que nunca mais me passou...
Claro que, com o meu rápido crescimento, os pés já chegavam ao pedal do "sustain" (me parece que é assim que se chama) e que me dava um jeitão, pois podia manter o som daqueles lindos graves, dando-me tempo para vir fazer o acompanhamento, com a mesma mão esquerda, ao lado da mão direita.
Como o comprimento dos dedos também acompanhou o meu crescimento, já tinham até comprimento para mais de uma oitava, pelo que em cada dia, até podia ter todos os 10 dedos sobre o teclado e em cada dia vinha a descobrir certas alterações muito agradáveis ao meu ouvido, até tocando algumas notas que nem estavam previstas, mas que davam ao conjunto, um som maravilhoso, além de cada vez poder dar mais expressão, às minhas tocadelas de ouvido.
E, como ia conseguindo, mesmo de ouvido, tocar imensas músicas, nunca mais pensei em aprender a tocar por pauta.


E assim mandei às couves, o Solfejo, as Pautas, as Claves, os Compassos, os Harpejos, os Ternários e Quaternários, os Diminuendos, os Crescendos, os Sustenidos e os Bemóis, as Fusas, as Semifusas, e muitos mais "palavrões" que ia ouvindo...
Na verdade, eu até tinha uma certa habilidade para descobrir os tons de cada música, e só necessitava da Nota Fundamental, no meu caso o tal FÁ, para logo me orientar, como se de um LAMIRÉ se tratasse.

Eu bem me apercebi de que todas aquelas notas, e eram as NATURAIS e os seus meios tons, tinham os seus acordes respectivos, mas isso já era muito complicado para mim...

Meu irmão, que entretanto estava a viver na Ilha da Madeira, ainda era mais habilidoso do que eu e até chegou a tocar de ouvido, na Radio e depois em Angola, no seu Observatório da Mulemba, tinha de dar um concerto das suas infindáveis músicas, a toda a gente que lá fosse...
Ele se chamava Carlos Mar Bettencourt Faria, e tocava muito ao estilo de Oscar Peterson, Charlie Kunz, Erroll Garner, etc, que eu adoro, mas não sei tocar assim e já não é com 80 anos, que vou conseguir...

Nesta altura, se alguém que sabe música, me está a ler, certamente que se estará a rir de tanta baboseira... e eu nada ralado, pois até descobri tons e sons, que me trazem as lágrimas aos olhos de lindos que são...

Mas o mais engraçado é que actualmente, com a ajuda da Internet e da possibilidade de trocar e-mails com os amigos, vim descobrir que tinha muitos deles que já possuíam instrumento, mas que não os conseguiam tocar, ficando, obviamente, muito arreliados e amargurados, até ao ponto de os arrumar a um canto.
Aí e começando a tentar explicar-lhes como eu vinha fazendo de há 70 anos para cá, verifiquei que eles só necessitavam de saber em que teclas tinham de carregar, para obterem de imediato e sem saberem música, estes lindos tons e variações que eu estava a usar e, desenhei em PAINT uma oitava, marcando as notas que eu sempre chamei e certamente erradamente, como Primeira, Segunda e Terceira posições, (só faltava a marcha atrás...) que são as necessárias para depois qualquer pessoa habilidosa, começar a tocar as suas imensas músicas preferidas.
E não é que está a resultar ?
Agora todos os dias me vão dizendo da sua admiração em tão simplesmente, fazerem tocar com sons tão acertados, as suas cantarolas e algumas músicas que nunca haviam pensado serem capazes ?
É ainda muito cedo para saber no que isto vai dar, mas num repente, encontrei uma data de malta, que me pede por e-mail, o famigerado e intrigante tom de FÁ MAIOR e FÁ MENOR , com as suas 1ª, 2ª e 3ª
Se é uma ideia genial, não sei, mas tudo indica que vamos ter muita gente a conseguir tocar piano ou órgão de ouvido e até talvez se venham a entusiasmar em aprender realmente música, como deve ser...
Não ha dúvida de que sabendo gerar as notas de que mais gostamos, nossas almas ficam profundamente arrebatadas !

23 comentários:

Mário Portugal Leça Faria disse...

Para conhecimento de todos os leitores, publica-se abaixo os 22 comentários publicados no site brasileiro Lima Coelho "http://www.limacoelho.jor.br/vitrine/ler.php?id=1036" a propósito deste post "E eram necessárias seis mãos"

Anónimo disse...

Caro Mário, que bela crônica!!!
Comentário Enviado Por: Maria de Lourdes da Silva Café
Em: 20/1/2008

Anónimo disse...

Mário, tuas crônicas são emocionantes. Gostod e lê-las
Comentário Enviado Por: José Augusto Mota
Em: 19/1/2008

Anónimo disse...

Oi Mário, que bonita a sua descrição das audições e produção de música em sua família.
Comentário Enviado Por: Margarida Pires Leal
Em: 18/1/2008

Anónimo disse...

Mário, hoje visitei o teu blog duas vezes, mas não sei porque não consegui enviar um comentário. Tentei duas vezes.
Comentário Enviado Por: Alice Matos
Em: 18/1/2008

Anónimo disse...

Gostei muito de ler tua crônica, Mário
Comentário Enviado Por: Lucíola Andrade
Em: 18/1/2008

Anónimo disse...

Acho suas crônicas maravilhosas
Comentário Enviado Por: Jorge Antunes
Em: 17/1/2008

Anónimo disse...

Gosto de tuas crônicas Mário
Comentário Enviado Por: Marcelo Torres
Em: 17/1/2008

Anónimo disse...

Valeu, Mário. Bjs brasileiros de sua fã
Comentário Enviado Por: Manuela Bretas
Em: 17/1/2008

Anónimo disse...

Você era um garoto muito esperto.
Comentário Enviado Por: Carla Patriota
Em: 17/1/2008

Anónimo disse...

Oi Mário, feliz 2008. Adorei a crônica
Comentário Enviado Por: Viviane Cordeiro Gomes
Em: 17/1/2008

Anónimo disse...

Prezado Mário, gosto de ler suas crônicas, pedaços de sua vida que compartilha conosco. Obrigado
Comentário Enviado Por: Elias Pacheco
Em: 16/1/2008

Anónimo disse...

Mário, realmente você é genial desde criança
Comentário Enviado Por: Graça Cabral
Em: 16/1/2008

Anónimo disse...

Oi Mário, babei. Felicidades
Comentário Enviado Por: Lorena Marques
Em: 16/1/2008

Anónimo disse...

Uma crônica deliciosa. Gostei demais
Comentário Enviado Por: Maria das Graças Pereira
Em: 16/1/2008

Anónimo disse...

Oi Mário, cada vez mais você merece a minh admiração, pois a cada crônica a sua figura se agiganta à nossa vista
Comentário Enviado Por: Antero de Quental (é meu nome!)
Em: 16/1/2008

Anónimo disse...

Oi Mário, achei lindo. Parabéns
Comentário Enviado Por: Ana Terra
Em: 16/1/2008

Anónimo disse...

Você era um criança esperta, tinhosa e com pendores musicasi, claro!
Comentário Enviado Por: Zilda Melo
Em: 16/1/2008

Anónimo disse...

Muito legal!!!!
Comentário Enviado Por: Paloma Brito
Em: 16/1/2008

Anónimo disse...

Que história, hein Mário?
Comentário Enviado Por: Ingrid Melo
Em: 16/1/2008

Anónimo disse...

Muito interessante. Parabéns Mário
Comentário Enviado Por: Mariana Rodrigues
Em: 15/1/2008

Anónimo disse...

Olá Mário que bom reler vc aqui, mais uma vez
Comentário Enviado Por: Luís Pedro
Em: 15/1/2008

Anónimo disse...

Olá Mário, que luxo a tua crônica! Um 2008 de muitas alegrias
Comentário Enviado Por: Melissa Costa
Em: 15/1/2008