sexta-feira, 5 de outubro de 2007

E O FOGUETE EXPLODIU NA BARRIGA DO CHEFE...

Mesmo no meio do ano de 1974, no dia 4 de Julho, dia da Independência dos EUA, o meu chefe que se chamava Henry Black e também era radioamador e me conhecia perfeitamente, teve a amabilidade de me convidar, bem como a toda a chefia da RARET, a um "party" no seu jardim, no Centro Emissor da Glória.

Aquilo estava cheio de todas as chefias da Empresa e todos acompanhados das suas esposas !

Aquela festa esteve animada durante umas horas, onde muito se comeu e bebeu e vim a saber que se estaria à espera da noite, porque ele havia encomendado uma boa molhada de foguetes vulgares e mais uns tantos de lágrimas, e daí o interesse pela noite.

Mas quando ela chegou, Mr. Black se dirigiu à malta, convidando alguém que lançasse fogo aos foguetes, mas logo viu que toda a malta se encolheu e só se ouvia as senhoras a dizerem aos maridos: Tu não te metas naquilo...isso são coisas muito perigosas..."

Na realidade, eu sempre havia sido um entusiasta pelas pólvoras e caça, pistolas e espingardas, desde a minha infância, mas largar fogo de artifício, aquelas "bombas" enormes, do tamanho de garrafas de litro, e com umas canas de cauda com mais de 2 metros de comprimento...é que nunca !

Minha esposa, sabendo da minha "coragem" para muita coisa, ainda me olhou com um sorriso calmo de confiança e assim resolvi avançar.

Assim pedi ajuda para colocar um escadote uma dezena de metros de distância das pessoas, pois teria de subir a ele, para poder largar os "malvados" foguetes de lágrimas, já com eles a direito e, para isso, eu teria de estar bem alto...

Lá acendi um cigarro, perante a curiosidade e receio de toda a malta, enquanto levando um foguete na mão, subi o escadote e larguei-lhe o fogo, ficando à espera que ele começasse a fazer-me força para me sair das mãos e, realmente, uns segundos depois dele ter espirrado uma data de chamas, e perante um ruído intenso, e vendo que ele já tinha força, larguei-o e ele ali vai direitinho como um fuso, a mais de 100 metros das nossas cabeças, e explodindo um lindo fogo de artifício, muito acompanhado pela algazarra e palmas de toda a gente.

Depois foi outro e mais outro, e tudo estava a decorrer como eu desejava e certamente, toda aquela malta e muito especialmente o aludido Mr. Black que sempre tinha demonstrado muita confiança nas várias coisas a que lhe tinha ajudado, como a construir placas de circuito impresso para as suas montagens electrónicas, placas que eu fazia em casa e lhe entregava no dia seguinte, no seu vasto gabinete...

Mas um meu colega da técnica, que se chama Ernesto Gama, resolveu mostrar que também era capaz de largar uns foguetes normais, muito mais pequenos, e vai de esborrachar cigarro sobre cigarro, no raio dum foguete, que teimava em não acender, por mais que ele arranhasse a pólvora de arranque...

Para ver melhor o que estava a fazer, ele havia colocado o foguete na horizontal, enquanto iam ardendo e soprando no borrão dos cigarros, uns atrás dos outros, até que por fim, lá arrancou e ele que, pelos vistos, nunca tinha largado um foguete na vida, assim que aquilo começou a fazer força, em vez de o colocar na vertical, largou-o na horizontal, e aí vai ele direito àquela malta toda ali reunida a poucos metros de distância !

Logo por azar, Mr. Black estava ali por perto, mesmo à frente, a ver a nossa coragem e o raio do foguete foi direito à sua barriga, tendo espalhado todas as bombas por todo o recinto, as quais iam explodindo entre as pernas de toda a gente, perante uma gritaria infernal de pavor e susto de toda a gente ! Só se via gente aos saltos...Até parecia que estavam a dançar...

Sim, porque uma coisa é ouvir o seu estralejar no Céu, e outra muito diferente, é ali mesmo aos pés das pessoas...

Toda a gente se apercebeu do embate violento do foguete na barriga de Mr.Black, e vendo-o todo arqueado e agarrado à sua barriga, ficaram muito preocupados, até porque ele havia tido uma trombose há pouco tempo e não poderia nem deveria estar por perto de um pesadelo daqueles...mas felizmente que ele se endireitou, todo branco e acalmou a malta, dizendo que estava tudo OK.

De cima do escadote eu assisti a isto tudo, ficando à espera da ordem para recomeçar a foguetada, e informando o meu colega Gama para não largar os foguetes, até que eles fizessem realmente força e pondo-os mesmo na vertical, para ter a certeza de que o infausto acontecimento, não se voltasse a repetir...

Mas como ele havia ficado petrificado com o acontecido, mal acabei os foguetes de lágrimas, desci o escadote e fui disparar os normais, que ainda eram uma data deles...

Depois vem o 25 de Abril de 1974 e este Mr. Black, inconformado com os acontecimentos políticos, e se estava a preparar para se ir embora de Portugal, teve um violento AVC e lá faleceu.

Escrito por Engenhocando em 2007/10/05 às 15:49:03

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

E QUERIAM VER-ME TOUREAR A CAVALO...



A minha entrada no Ribatejo, em 1951, e dada a minha juventude de 23 anos, foi repleta de experiências trágico-cómicas e que tenho vindo a descrever deste há alguns anos, neste Blog.

No mundo exterior a esta região agrícola, só se sabia que era terra de sezões, e quando os amigos souberam que eu estava destinado a vir viver para Benavente, até me deram as condolências... mas, felizmente, essa época das sezões, já tinha sido ultrapassada há muito e sob controlo dum médico que cá se radicou muitos anos, o Dr. Fonseca.

Entrar nestes lados, Samora Correia, Benavente, S. Estevão, e Salvaterra de Magos, era uma odisseia, porque só se podia cá entrar por barco em Vila Franca de Xira, dado não haver qualquer ponte. Todo o material pesado da Empresa, estava a chegar de barco à vela, via Vala Nova, tanto a Benavente, como Salvaterra de Magos, de onde era carregado em camionetas da Empresa Irmãos David de Benavente.

A Empresa para onde eu viria trabalhar, a RARET, estava cá há poucas semanas e só conseguiu arranjar hospedaria e alimentação para a rapaziada, em Salvaterra de Magos, na Rosa Grilo, que dista uns 6 Km de Benavente e todos os dias tínhamos de andar este trajecto de "jeep", 4 vezes por dia.

Lisboa ficava muito distante... pelo que os fins de semana eram passados a ver as terras e as pessoas, pelo que rapidamente nos fomos dando com as gentes novas das terras, especialmente as suas lindas garotas, que gulosamente nos olhavam envergonhadas, e assim aconteceu em Salvaterra, um certo dia em que uns jovens como eu, me perguntaram se eu gostaria de ir dar um passeio a cavalo.

Realmente, eu havia entrado no Ribatejo, pela "porta do cavalo"...

Benavente dessa altura, tinha quanto muito, 3 ou 4 automóveis e as pessoas andavam todas avontade pelo meio das ruas, sem a mais pequena preocupação com o trânsito, até porque nestas alturas, o que se via, eram charretes e malta a cavalo ou a pé.

Não me fiz rogado, embora de cavalos não tivesse experiência nenhuma, mas lá fui, e me deram um belo cavalo para montar. Assim, passados poucos minutos, já íamos todos em cortejo, a passo, sair da vila de Salvaterra, para a lezíria, ali mesmo ao lado, nos terrenos do Conde Monte Real. Mal sabia eu o que me esperava, pois mal eles lá se apanharam, começaram a galopar à bruta e o meu cavalo, sem que eu fizesse nada, seguia-os também na sua louca desfilada.

Aquilo era tenebroso, porque em cima daquela "montanha" de carne, eu via o chão lá muito em baixo e, quando me ia assentar, levava um pontapé no rabo e aquilo estava mesmo feio, porque não conseguia sincronizar o meu rabo, com o sobe e desce da garupa do animal, chegando a ver-me abraçado ao seu pescoço, para não cair dele abaixo ! Assim, resolvi afastar o rabo do selim, como fazem os "cowboys", e lá me deixei eu ir atrás daquela malta que fez de tudo para me ver cair da minha montada, fazendo curvas muito apertadas que o meu cavalo repetia, quase atirando comigo "borda fora"...se eu não estivesse bem agarrado...e talvez até, a meter as esporas...sei lá...

Os animais já espumavam por todos os lados, quando eles reconheceram a minha "habilidade" para montar sem cair...e lá fomos deixar os animais descansar na cavalariça, tendo-me eu apeado todo a tremer e até me dava a impressão de que tinha ficado com as pernas arqueadas de tanto as apertar na barriga do animal....


Igreja de Benavente

Mas em Agosto desse ano, nas festas religiosas de Benavente, da Senhora da Paz, e tendo conhecido um jovem de Benavente que se chamava José Pedro Neto, infelizmente já falecido, filho dum grande lavrador da terra, o Sr. Xico Neto, ele me convidou para ir dar uma volta a cavalo pela Vila e para "abrilhantar" o meu aspecto, resolveu vestir-me o seu fato cinzento de lavrador, incluindo chapéu preto masantino e botas com esporas...

Como tínhamos fisicamente, muita parecença, 1,75m de altura e magros, eu até estava "bonito" dentro daquela "farda". Assim belamente vestido, ele deu ordem ao maioral que me arranjasse um cavalo e assim lá vou eu a atravessar a Vila, passando à porta da casa do Dr. Sousa Dias e fui até ao Calvário, passando pela rua dos Correios, que fica no fim da vila, tendo depois ido descer a rampa que passa junto da fonte de S.Antonio, sempre a passo, onde parei para cumprimentar uns fabianos que me estavam a barrar o caminho e me saudaram alegremente.

" Isso é que é sorte...oh sr. Portugal...isso não é para qualquer um..."


Eu até parecia alguém importante !

Mas na despedida, um deles deu uma palmada forte na garupa do cavalo que não achou graça nenhuma e arranca numa correria infernal para Rua Luiz de Camões acima, e que acaba mesmo em frente à loja do Sr. Castelo, pelo que eu, na impossibilidade de fazer parar o malvado cavalo, já me estava mesmo a ver ir parar dentro da loja, em cima ou por baixo do cavalo...

Eu nem sabia se ia a trote se a galope...

Aquilo estava mesmo feio, porque a estrada era muito escorregadia de pedra, e àquele velocidade, o cavalo não se conseguiria manter em pé, mas como a sua tendência, era ir para a rua de onde tínhamos vindo, a do seu curral, foi por aí que ele tentou meter-se, mas como estava apinhada de gente, toda aos gritos "fujam, fujam, ele vai cair..." -e eu a puxar pela rédeas, enquanto agarrava o chapéu que queria levantar voo, o cavalo pôs-se em pé a relinchar, enquanto toda a malta se afastava e assim, quando ele viu que já podia pôr as 4 patas no chão, continua na sua louca correria a caminho do seu estábulo, voltando a passar em frente à casa do Dr.Sousa dias, e depois o cemitério, onde só não parti a cabeça à entrada, porque me baixei até ficar com a minha cara, ao lado do focinho do cavalo...que se devia estar a rir...

E lá parou o animal, certamente muito espantado com as manobras que eu havia tentado pedir-lhe e que ele acharia, por certo, muito impróprias... de um cavaleiro decente... e tinha razão...

Mas isto não ficou por aqui, pois uns dias depois, vêem-me bater à porta umas pessoas da festa, a pedir-me para eu ir tourear na velha e desconjuntada praça de touros que cá havia.

Eu fiquei petrificado e logo lhes disse: "Nem pensem, eu não entendo nadinha de cavalos nem de toureio", mas eles logo me avançaram que eu estaria a ser muito modesto, pois me haviam visto uns dias antes, no largo fronteiro à igreja, dominar de tal forma um cavalo, que eu teria de ser um grande cavaleiro, a pessoa indicada para o toureio...

Bem que eu lhes explicava que tinha sido a segunda vez na minha vida, que tinha andado a cavalo e que não havia caído dele abaixo, porque isso seria a única coisa que eu não queria, de todo, que me acontecesse, pois nem um osso ficaria inteiro...especialmente porque o largo era todo de pedra...além de que não queria devolver ao José Pedro Neto, o fato todo rasgado e sujo...aparte os meus ossos que certamente por ali ficariam todos espalhados...

Assim se foi o comitiva da festa, muito chateada, por não me terem conseguido convencer a entrar a cavalo na praça de touros.... Olha eu, que de touros, só aos bocados e dentro do prato, a ver-me ali num espaço tão pequeno e sem ter prática alguma de tourear a cavalo....Ia ser bonito !!! Pobre do cavalo e de mim !!!

sábado, 29 de setembro de 2007

QUANDO HAVIA PRAXE ACADÉMICA por Prof. João Vitalino Martinho


E cá vai mais um agradável comentário do meu ilustre amigo e professor João Martinho, recordando os seus tempos de Coimbra, em 1951.

ARTIGO Nº. 73


« Quando havia praxe académica »

Pelo Professor João Vitalino Martinho

Naquele tempo, junto ao Arco de Almedina, na sempre cantada cidade de Coimbra, estavam quatro quintanistas de outras tantas faculdades.

Rodeavam um incauto caloiro que por ali passara saboreando o movimento das ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz, naquela tarde de Outubro em que as capas negras anunciavam o início dum novo ano lectivo.

Das pastas dos doutores sobressaiam as fitas largas que completavam o conjunto policromo da indumentária do estudante de então, em que sobressaía a imaculada alvura da camisa com o laço negro indicativo de distinção.

- Caloiro, você está mobilizado. Mantenha-se atento...já vai entrar de serviço...

O grupo, divagando sobre vários assuntos, procurava aliviar a carga psicológica do estreante nas lides académicas, solicitando a sua opinião de forma a provocar um mínimo de oralidade e acalmar os nervos do rapaz.

- Caloiro...! Respire este ar...Você está na cidade do amor. Tudo aqui é diferente da selva donde você veio. A propósito, você sabe o que é o amor ?

-O amor é.....um substantivo....

.Você não venha para aqui com essas maluquices que andou a aprender na escola primária e no liceu...! Você está em Coimbra !

Um outro quintanista pega na palavra e inquire:

-Ora diga lá quem é que escreveu:

"Estavas linda Inês posta em sossego.

De teus anos colhendo o doce fruito...

Naquele engano de alma ledo e cego...

Que a fortuna não deixa durar muito..."

- Parece-me que foi o Camões.

-Então você trata o nosso maior épico por tu ? Ou será que você é um predestinado que veio para substituir os Lusíadas pelos Caloiríadas . E rematando:

-Você vê aquela senhora que ali vai ? Vá atrás dela e faça-lhe uma declaração de amor. Nós vamos segui-lo para ouvirmos a sua adjectivação que trata por tu a de Camões. Toca a andar...

- Boa tarde minha senhora....pois eu...

A senhora parou mostrando o porte duma mulher esbelta e encorajou o interlocutor:

-Então diga lá o que tem para me dizer.

O caloiro, adquirindo alguma serenidade, confessou estar naquela situação, por imposição da praxe académica de Coimbra... que o grupo que disfarçadamente os observava, o tinham encarregado de interpelar a senhora para fazer uma declaração de amor.

- Então faça...

Não se cansou o caloiro de evidenciar a simpatia e compreensão vividas nessa sua primeira experiência da praxe como estudante de Direito. Agradeceu e pediu desculpa...muita desculpa, confessando não ter atrevimento para importunar.

Entretanto os doutores aproximaram-se e quando se preparavam para retirar o mobilizado daquela situação, a senhora pegando-lhe no braço dirigiu-se ao grupo.

-Este senhor não sai daqui...está sob a minha protecção e vai lanchar comigo na pastelaria defronte. E foram.

No decorrer do chá, o caloiro ouviu palavras de apreço pelo seu aprumo e compostura com votos para que fizesse o seu curso com brilho e honrasse a Universidade de Coimbra.

A senhora era professora da Faculdade de Direito.

Nota: Este acontecimento foi testemunhado pelo autor em 1951.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

«TI BORNEL » Por Prof. João Martinho





Editor:

Pela mão do meu ilustre amigo Prof. João Vitalino Martinho, segue-se mais um dos seus contos referentes à sua terra Natal, o ESPINHEIRO, em pleno Ribatejo.

Ele sempre lá encontra gente que marcou toda a sua mocidade e que ele tão bem descreve nas suas crónicas. Como sempre, é uma honra poder incluí-lo no ENGENHOCANDO.






Prof. João Vitalino



MANUEL FELIPE BENTO

Ti Bornel

18...? 19...?

De acordo com documentos coevos arquivados na Torre de Tombo, consta que no dia 13 de Agosto do ano de 1527, na cidade de Coimbra, Jorge Fernandez, escrivão da chancelaria da comarca da Estremadura, terminou o registo das cidades, vilas e lugares e dos moradores que havia em cada um deles, por mandato do rei D. João III.

Foi no desempenho deste encargo que o acima referido Jorge Fernandez chegou a Alcanede, fez o seu levantamento e incluiu no termo desta vila, a aldeia do Espinheiro com 11 vizinhos, a qual, posteriormente, andou confundida com outros Espinheiros e Espinheiras espalhados pelo país, por cronistas um tanto distraídos.



Por tradição oral atribui-se aos seus primeiros residentes, a condição de pastores que por aqui se fixaram, mercê da abundância de pasto e águas correntes e a quem, dentro da lógica mais elementar, se lhes atribui o uso do pau para condução dos animais e amparo corporal nas movimentações em terreno acidentado. O pau está na história humana retratado no organograma da evolução do homem em que o homo habilis e o homo erectus aparecem usando tal ferramenta como extensão da mão, na luta com as feras.

Na idade média quando era preciso mobilizar o povo, como última reserva de carácter militar, a arma era o pau, usado muitas vezes sem contenção, como sucedeu com a fuga das hostes castelhanas após a batalha de Aljubarrota, o que levou o Condestável a pedir compaixão pelos vencidos que foram dizimados à paulada, na confusão da retirada.

D. João I mostrando, um dia, grande incerteza na conservação da praça de Ceuta, D.Pedro de Menezes lhe respondeu que com aquele aleo (cajado) que tinha na mão, defenderia a cidade de toda a barbárie.

Rendido à evidência da utilidade e eficiência de arma tão barata como rudimentar, Ti Bornel, serrador de profissão já criança, ensaiou nos primeiros passos num jogo que alternava com a agilidade necessária para o executar. Quando chegou à idade adulta, não havia no Espinheiro, nem nos arredores, opositor capaz de o enfrentar.


Na disputa pela supremacia envolveu-se algumas vezes em luta rija com os conterrâneos.

Conta-se que o Ti Zé Rosa, um dia, provocou-o no sentido de se confrontar com toda a violência para, de uma vez para sempre, ficar definida a superioridade. Ti Zé Rosa, em poderoso ataque, levou o adversário em permanente recuo desde o Rio dos Cantos até ao entroncamento com a Rua Principal, já a cantar vitória, sem sequer se aperceber que Ti Bornel tinha estado permanentemente na defesa. Mas ali mudou o cenário, Bornel passou ao ataque e disse para o adversário:

- Ó Zé escolhe lá a oliveira do Forno Telheiro onde queres ir descansar...!

E o Zé não foi capaz de progredir um só centímetro... sempre a recuar... a recuar... até uma das oliveiras onde terminou a pugna e se definiu de que lado estava a superioridade.

Não se pense que Ti Bornel era um homem de forte compleição física. Antes pelo contrário, dava até a impressão que uma leve aragem era o suficiente para o deitar por terra... e disso se convenceram quatro provocadores duma aldeia vizinha que o meteram no meio deles com a intenção de lhe dar uma grande sova.

Três saíram com a cabeça partida, após alguns minutos. O quarto resistiu até que o Bornel, dando-lhe um toque numa das mãos, obrigou-o a largar o pau.

Perante a incapacidade do adversário, completamente desarmado, Ti Bornel deu por terminado o combate, enquanto o outro resmungava:

-Essa foi de mestre ó mestre !

Dando troco ao vencido, Bornel rematou:

-Esta aprendi-a com o David quando cá veio um gajo de Pataias desafiá-lo. Só que ele, antes de aplicar a receita, partia o pau ao meio e deitava metade fora. Nunca mais o Espinheiro cá tem um jogador como aquele...!

Bornel viveu numa modesta casa situada num minúsculo aglomerado que o povo baptizou de Etiópia e por isso alcunhou-o "Conde Bornel Imperador da Etiópia".

Quando morreu com noventa e muitos anos, foi-lhe prestada uma significativa homenagem que, no Espinheiro, só era merecida por aqueles que ao longo da sua existência, davam provas de honradez e apego ao trabalho.

Nessas horas em que se fina uma vida, costuma o povo, no seu discernir, evocar factos da vida do extinto, como exemplo a seguir. Do Bornel ficou aquela arrancada quando disse que não tinha trabalho a sarrar e por isso ia para férias.

Férias aonde ? indagaram.

A cavar terra que é para onde deviam ir muitos malandros que andam por aí na moinice...!

E na terra ficou para sempre com o rosto voltado ao Céu, como que contemplando as estrelas.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

MANUEL BARÂO pelo Prof. João Vitalino Martinho




Nota: Pela mão do meu amigo Prof. João Vitalino Martinho, aqui vai mais uma das suas interessantes crónicas sobre o ESPINHEIRO, sua terra natal.









Manuel Barão dos Santos Justo (1926 - 1998 )


O Manuel Justo...recordá-lo acarreta um sofrimento que faz doer a alma e oprime o coração.

Um moço irrequieto e buliçoso...cheio de sonhos...de sorriso aberto...abraçando a vida com entusiasmo, amigo do seu amigo, brincalhão e disponível para ajudar...espalhou simpatia e foi um bem amado da gente do Espinheiro.

Quem não se lembra dele a cantarolar na Ribeira, de balde ao ombro, em direcção ao Açude onde ia fazer as regas encomendadas pela mãe, D. Elvira...nos bailes onde se distinguia pela distinção com que se dirigia às raparigas...no lagar do pai onde participava em todas as operações comandadas pelo mestre, ti Florindo...na vivacidade com que participava nas discussões entre rapazes do seu tempo.

Manuel encarou a vida com um salutar optimismo até que, passados alguns anos, na sua juventude, se apercebeu do erro que cometeu quando se negou a seguir estudos que o libertassem da duvidosa subsistência proveniente da agricultura. O facto de o pai ser possuidor duma das mais abastadas casas do Espinheiro, não o motivou para seguir uma carreira diferente da que, por atavismo, lhe estava destinada, mas a breve trecho se foi apercebendo do endividamento progressivo do pai que equipou o lagar com maquinaria moderna, afogado por juros altíssimos.

As perspectivas, já de si sombrias, agravavam-se com a dificuldade de colocação dos produtos da terra e a desenfreada exploração dos intermediários.

A flutuação dos preços dos produtos e a ausência de incentivos a quem verdadeiramente trabalha a terra, criou-lhe no espírito um sentimento de frustração e de revolta que o levou a abominar as searas, os olivais, os lagares, os gados, as eiras, etc.etc.

Manuel, já casado e com um filho, abalou para França...emigrou.

Tal como os primeiros estudantes do Espinheiro que representaram uma insubmissão ao fatalismo da condição de pobres que lhes determinou uma consciência de cidadania, Manuel entrou no mundo do trabalho francês sem uma especialização que lhe permitisse disputar um lugar compatível com o estatuto que desfrutava na sua terra.

Arranjou emprego numa conhecidíssima fábrica de perfumes parisienses.

Deveras agradado com a descontracção das suas colegas francesas que se divertiam quando, por desconhecimento da língua, Manuel confundia um caixote com umas luvas ou via pás por todos os lados.

Certo é que a gerência não lhe conhecia grande rendimento mas fez dele uma espécie de cartão de visita com que promovia os seus produtos universalizados em todos os locais frequentados por este espinheirense.

E como ? As colegas, com a tolerância das chefias, despejavam-lhe frascos de perfume na cabeça e nos estofos do carro, de modo que se transformou num expositório andante de odores que tresandavam à distância.





Manel Justo, à direita na imagem. Ao seu lado, o autor do escrito.





Quem lhe entrasse no carro, saía de lá comprometido como se tivesse saído dos braços duma coquete, tal era a saturação das essências entranhadas no habitat. Le portugais, como ficou conhecido, na gíria da fábrica, rodeado de certas atenções consequentes do seu ar distinto, quase sem dar por isso, deu à sua vida uma volta de 180º...

Adoptou hábitos e vivências dos meios cosmopolitas franceses de modo que, quando veio passar as vacanças à terra, conduzindo uma viatura desportiva de luxo, descapotável de dois lugares, a família e os amigos mal lhe reconheceram a matriz.

O Manel Justo caprichava em mostrar um grande desafogo por oposição ao desprezo com que foi tratado na sua Pátria. Instava mesmo os amigos a abandonar esta pasmaceira e convidava-os, maliciosamente, a dar uma voltinha para apreciarem o que era um carro.

Eles, ingénuos iam, mas à noite, quando regressavam a casa descuidados, eram recebidos rancorosamente pelas mulheres que os invectivavam:

-Onde é que andaste ? Cheiras a putas...!

Manel Justo resumiu a sua filosofia de vida na intolerância ao fatalismo, como arma de arremesso, e no humor como defesa natural que usou nas situações difíceis em que, por vezes, foi indevidamente interpretado.

Brincalhão, gostava de soltar uma gargalhada sonora comunicando optimismo e ajudando a superar dificuldades, como aconteceu com alguns conterrâneos em França.

Como afirmou bastas vezes, foi emigrante por repúdio às condições de vida que lhe eram impostas e não com o objectivo de amealhar um pecúlio à custa de sangue, suor e lágrimas.

Judiciosamente, defendeu-se de quem criticou o seu estilo de vida, com uma espécie de declaração de voto:

- Eu antes quero viver rico e morrer pobre do que viver pobre e morrer rico.

Recordando os tempos felizes com ele compartilhados no Espinheiro, o autor sublinha a rectidão dos seus actos que bem podem traduzir-se na expressão: amicus certus in re incerta cernitur (amigo certo nas horas incertas).

Repousa em paz no cemitério da sua terra natal.

PAZ À SUA ALMA