terça-feira, 31 de outubro de 2006

Um garoto como os outros, ou... talvez não...

Quando eu tinha 9 anos, era esse miúdo que se pode ver escarranchado sobre o motor do automóvel que meu avô, médico, havia acabado de comprar e de que era muito orgulhoso. Era uma Austin 7. Até essa data, ele só tinha andado a cavalo ou num carro muito popular em S. Miguel, um Char-a-banco, puxado por um cavalo, em que as pessoas são assentadas frente a frente, depois de entrarem por uma portinhola traseira.

Meu pai, pessoa muito enfronhada em automóveis, era continental e foi ele que escolheu o carro, para poder resistir às péssimas estradas de terra esburacada que existiam nas terras onde meu avô tinha de fazer as suas consultas, desde os Mosteiros às Feteiras, passando pela Várzea, Ginetes, e Candelária. Foi até com certa relutância que ele me colocou sobre o carro, mas como eu era o mais leve e pequenino...lá me colocou, talvez para me colocar mais em evidência, pois mostrava, constantemente, muito gostar de mim. Depois foi aprontar a grande máquina fotográfica, que estava segura a um tripé, que estava ali a uns metros e, metendo-se por baixo do pano negro para poder fazer uma boa focagem no vidro despolido, acabou por meter a chapa fotográfica e fez esta fotografia, onde as garotas à frente, são as minhas irmãs, à minha direita o meu irmão Carlos Mar, seguido do meu primo Armando e do outro lado, meu primo Eduardo e um vizinho.

Este escrito, não vem aqui parar por acaso, mas para descrever ao curioso leitor, para o que contei no artigo anterior, A MAGIA DA VIDA, em que tive de recitar um poema, não sei de quem...mas que me tinha sido entregue pelo meu professor de Instrução Primária, para decorar e poder recitar no 1º. de Dezembro. Naquela época, todas as escolas tinham de fazer festa grande no primeiro de Dezembro, não só com teatro mas também recitando poemas alusivos à data.

Como qualquer miúdo de 9 anos, eu nunca tinha sido ensinado a recitar em público e, mais ou menos todos os alunos escolhidos para recitar, também não. Aquilo era chegar ao "palco" e despejar o que se tinha decorado com maior ou menor facilidade e velocidade....

Como eu nunca fui de grande memória, o meu professor escolheu um pequeno poema sobre Portugal e lá fui decorando aquilo, até que acabei por fixar. Deste poema, só me lembro que começava com:

" Portugal, minha pátria estremecida, abre o teu coração e deixa-me ver...", etc. etc...

Estávamos já em meados de Novembro e meu pai, artista nato e até tocando muito bem violino, ao saber que eu estava escolhido para ir recitar daí a dias, chamou-me à sala e disse-me:

Vai ali para fora e, quando eu disser "entra", tu entras e recitas.

Assim fiz, mas entrei na sala a correr e quando ia a começar a "despejar" o poema, ele estendeu o seu braço direito na minha direcção e gritou, todo zangado: rua !

Eu, julgando que era mesmo RUA...largo a correr pelo corredor, em direcção à rua, e a pensar "desta já eu me safei hoje", mas ele logo me gritou para recomeçar. Um pouco constrangido com o acontecimento, lá entrei devagar na sala, com os braços pendurados ao longo do corpo e, mal ia começar o poema, meu pai bramou de imediato, que não era nada assim, porque eu iria descrever em verso a História de Portugal, no tempo das nossas aventuras e descobertas à volta do mundo e isso, exigia uma certa solenidade da minha parte.

Eu sabia lá o que era aquilo de "solenidade"... mas ele me explicou que eu devia dizer a palavra "PORTUGAL" lentamente, afastando em arco os braços, como se fosse dar um grande abraço a Portugal. As mãos de deviam estar perto do peito, até abrir os braços, enquanto diria a palavra Portugal e, colocando os dois braços dobrados e flexíveis, podia então começar a recitar o poema, movimentando docilmente os braços a cada estrofe.

E vai de recomeçar tudo de novo ! Mas mal iniciei o poema, e para ver se não me esquecia de nada...estava já a "despejar" tudo aquilo em catadupa, quando fui novamente interpelado pelo meu exigente pai, que entretanto já tinha caçado algumas palavras do poema, e exigiu que ele fosse dito muito claro e pausadamente, e assim lá vou eu novamente para o corredor, para reiniciar o poema.

Há distância de 69 anos dessa data e sendo meu pai um continental, ele deveria ter muita dificuldade em entender o sotaque açoriano de S. Miguel, pela voz esganiçada dum miúdo de 9 anos e daí, julgo eu, que me obrigasse a proferir lentamente as palavras do poema.

Eu devo ter recitado aquilo umas mil vezes, até que ele se desse por satisfeito !

Meu pai, que já estava muito doente nessa altura, ( e até morreu no ano seguinte) ainda conseguiu ir assistir ao espectáculo na Escola Primária dos Ginetes, e ver se eu conseguiria recitar o poema, como ele desejava e foi, por isso, que perante estrondosas salvas de palmas, toda a gente dizia BIS e mais BIS.

Do meu esforço, resultou um carinhoso alisar dos meus encaracolados cabelos, pelas mãos de meu pai, pessoa pouco dada a carinhos, fazendo-me sentir que estava orgulhoso de mim.

Como tenho saudades de ti, querido pai ...

Sem comentários: