quarta-feira, 1 de novembro de 2006

O DESPIQUE (por António Águedo Gomes)

Isto dos Blogs, tem como se diz aqui pelo Ribatejo, os "seus adeveres" e têm-me surgido umas certas dificuldade em fazer "engrenar" os escritos que me chegam via e-mail, no Blog...

Hoje tenho o gosto de apresentar um escrito dum grande e simpático amigo meu, que mo enviou desde o Algarve. Eu sempre admirei e muito, as raras pessoas que conseguem, pela escrita, dar-nos a felicidade duma boa e sã gargalhada.

Isso já aconteceu com o escrito do Prof. João Vitalino Martinho, que certamente, e como a mim, provocou uma boa gargalhada no seu final.

Um conto à lareira em noite de chuva
O despique
O Zéi do Couço era almocreve!

Com diligência e tempo tornara-se um excelente mercador, especialista em todas as mercadorias rurais, e conseguira qualquer coisa de seu.

Era ele, quase em rigoroso exclusivo, que tudo mercava e recovava, de e para o Monte da Cruz de Pedra, ao mesmo tempo que ia tentando arrastar a asa à única filha do lavrador, de quem já se sentia senhor e amo, tanto quanto escravo, mas sem qualquer resultado prático.

A Raimundinha havia o fértil morgadio do Cerro Alto, que era qualquer coisa que se via, e que, junto com a graça, herdara de sua mãe.

Esta “qualquer coisa que se via” equivale a algumas léguas de plantio de pão para a mesa, de papas quentes para as invernosas manhãs no monte, de rações e forragem para o gado de leite e tiro, de lã e queijo, de carga e monta, de caldos e de ovos sem esquecer o de cera e mel.

Além barranco onde corria o ribeiro que matava a sede a uma viçosa horta que fornia de profusa verdura mais de vinte vendas em redor, começava o montado que dava avonde para as respectivas varas de marrãs capadas, de bácoras de cria, de cevados e de varrões, para alguns javardos de arribação e ainda para abundante caça de pena e pelo e também para uma boa mancheia de rolhas.

Havia ainda uma extensão de um rubinéctar, de que os compadres mimoseados diziam ser “uma devina diliça”, além da perspectiva, que Deus a atrasasse por muitos anos, de se lhe juntar aquilo de que o Monte da Cruz de Pedra vivia, e que o sagaz lavrador mantinha activo e prolongava como seu.

Era esta fazenda a ambição de maior anelo do Zéi do Couço que a queria a troco do seu nome que de muito pouco valeria para a merca.

Com o pensamento na Raimundinha levava ao monte muitas daquelas bugigangas tão do agrado das vaidades femininas, mas da Raimundinha nem um olhado e era a sua bojuda ama de leite, a Amália Quejera, quem regateava a qualidade, o preço, a conveniência e o recato daquelas frivolidades destinadas à morgada.

A terra tinha sido generosa! Pagara bem as sementes! E naquela quase noite daquele quase fim de Verão, ao abrigo das volumosas serras de palha que impediam a corrente de norte que tinha ajudado, e bem, a sua debulha, de assistir e perturbar a animação do balho das festas da colheita que fazia descansar a família da canseiras das cegaduras transactas e incitava à labuta da vindoura vindima, a gente do monte divertia-se.

Chegara a hora das cantigas ao despique e o Zéi do Couço já se tinha insinuado e mesmo permitira-se dirigir umas indirectas, sem qualquer resposta da Raimundinha, mas foram tantas que esta não se conteve e às tantas disparou:

“Diz-me cá ó Zéi do Couço C’and’abalas cá do monti P’ra levares pró tê almoço Três marmelos qu’ê di onti”.
Metido na troça geral e muito encavacado o Zéi do Couço, como bom brutamontes que era, retrucou:

“S’os marmelos te dã festa Ó os papas por entero Ó c’arriata da besta T’arribento o marmelero”.
Com toda a gente de boca aberta e sem reacção, a Raimundinha, muito serena, replica:

“N’árribentas marmelero Pôs tu nã prestas p’ra nada! Ê papo o marmelo entero E é p’ra ti a marmelada”.
A expectativa da resposta do Zéi do Couço pôs no ar alguns cajados e outros de prevenção, que depois de grande hesitação lá se atreveu:

“A marmelada que fazes Dêt’á fora rapariga. Ê quer’é fazer as pazes E que sejas minh’amiga”.
Nesta altura o lavrador decidiu intervir e, com um olhar decidido, fez baixar alguns cajados, bem poucos, e encarando bem de frente o Zéi do Couço intima:

“Aqui nã vás ter amiga Nem qu’o diabo m’afronti. Abala já c’a cantiga. Nã venhas más ó mê monti”.
Aqui caíram todas as aspirações e orgulho do Zéi do Couço, e lá abala ele mais o seu séquito de récovas, de cabeças baixas e sem carga, comitivados pelas cortesias de um avantajado cortejo de bem alçados cajados e bordões, até às extremadas do Monte da Cruz de Pedra, e sem deixar saudades em quem ficou no balho das colheitas e no despique mofoso que se seguiu em sua memória.

Prosador do Soltavento

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