quinta-feira, 9 de novembro de 2006

À ESPERA DUM RAIO QUE NÃO ME PARTISSE...

Todas as ilhas são atritas ao disparo de raios e S. Miguel, não é excepção.

Não é por ser muito alta, nada que se pareça com a ilha do Pico nem com a da Madeira, mas era certo e sabido que era usual ouvir-se falar de raios que tinham fulminado pessoas e gado, atravessado casas, atirado pelos ares panelas e tachos, etc.

Meu avô, como médico, tinha sempre de ser chamado para ir verificar e passar a certidão de óbito daqueles desgraçados que, fugindo à chuva, se iam meter debaixo das árvores e eu ouvia dizer que os seus corpos, se encontravam totalmente carbonizados.

Assim , tremores de terra e raios, não amarguram nada, os açorianos. Aquilo é o pão nosso de cada dia.

Estava eu, em certa altura, a ouvir meu irmão Carlos Mar, que era dois anos mais velho do que eu, que as coisas metálicas, em especial de ferro, atraiam os raios e, com tanta força, que até os derretiam, perante uma espécie de fogo de artifício incrívelmente lindo !

Aquilo devia ser um espectáculo interessante de observar e, em certo dia, perante uma trovoada das grandes, resolvi agarrar umas chapas de ferro e, carregando os meus 10 anos de vida, subi ao morro que ficava mesmo ao lado da casa onde vivíamos, munido de um guarda-chuva, para tentar observar o espectáculo que seria, um raio cair nos meus ferros...

Do outro lado da nossa casa, está o outeiro onde me fui plantar à espera que um raio caísse nos meus ferrinhos...

Aquilo estava mesmo feio, com o céu muito negro a os raios a caírem por todos os lados, menos nos meus ferros que havia colocado ali a uns metros de mim...e os trovões eram tão fortes que todo abanava, mesmo assentado no chão de pernas cruzadas e já com os calções e o rabo todo encharcado...

Um criado da casa que havia ido carregar mais um barril de água para a cozinha, deu comigo lá em cima, no topo do outeiro e foi de imediato chamar meu pai e toda a família, e eu logo vi pelos seus bracejares, que dali não me viria nenhuma festinha...mas lá desci e venho encontrá-los imensamente arreliados comigo. Cada um gritava para seu lado e eu nada entendia...

Ninguém me bateu, mas meu pai agarrou nuns 2 ou 3 metros de linha, amarrou-mos aos pulsos e crucificou-me entre duas portas, avisando-me que se eu rebentasse as linhas, então levaria uma grande tareia...

Ali fiquei eu "crucificado" sem poder deixar os braços cair, até que as dores nos ombros passaram de ligeiras a alucinantes e as lágrimas começaram a rolar-me pela cara abaixo. Aquilo doía demais !

Por que diabo eu estava a merecer um tal castigo ? E dele, de quem tanto gostava ?

Naqueles minutos de tremenda angústia eu cheguei a abominar meu pai, pois ainda hoje, passados mais de 70 anos, ainda não sei o porquê de ele não me ter explicado o perigo por que estava a passar, mas meu avô ao ouvir o meu choro baixinho, acabou por me aparecer dizendo, "já basta" e lá me deixou ir embora arrasado de sofrimento, para o meu quarto que era no sótão.

Meus 4 irmãos, estavam à minha volta, sem dizerem palavra, mas todos com caras muito tristes, enquanto eu continuava a chorar desesperado, não com a ausência do raio... e já nem com as dores nos ombros, mas por me terem "roubado" a possibilidade de observar por perto, uma coisa que tanto me estava a encantar e, pior, ninguém me ter explicado onde estava o real perigo...

A partir dessa altura, logo pensei que quando fosse grande, iria fazer tudo o que estivesse ao meu alcance, para explicar aos que me rodeassem, não só os perigos que nos rodeiam, mas a forma de fugir deles... e muito menos castigar violentamente uma ignorante criança, como eu era, e muito menos daquela forma.

E continuava a pensar no porquê de nenhum dos GRANDES, ter aproveitado aquela situação macabra, para me dar uma explicação suficiente para a minha tenra idade.

Hoje, rondando os 80 anos, embora consciente dos tantos "disparates" que levei a vida a fazer, "bricalhotando" e "engenhocando", sinto que, de qualquer forma, estes "disparates" todos, me ensinaram a viver e conviver com os perigos que, mais ou menos, todos encontramos pela vida fora, na vida.

Mas lá que era "levado da breca"...isso era ...

Sem comentários: