sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Aprendendo a pilotar um avião

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Quando em Novembro e 1991, minha esposa faleceu, e depois do seu enterro, só cá ficou por poucos minutos, a minha mãe que depois de me ter entregue um avental encarnado, daqueles que levam pregado ao lado uma toalhinha, deu-me um beijo e foi-se também embora...

Ali fiquei como pessoa atirada para o meio de uma arena sozinho e de "capa" na mão, com um toiro a olhar para mim, pronto a marrar-me.

Afinal, toda minha vida tinha sido levada a defender-me sozinho de "marradas" e não era agora que iria desistir.

Felizmente que sempre havia descoberto uma forma mais ou menos airosa de safar-me, até porque havia armazenado imensos "brinquedos" com que me poderia entreter e como radioamador, possuia centenas de amigos ou conhecidos, com quem poderia manter um estilo de vida mais ou menos agradável.

Mas agora, tudo era diferente, pois tinha de aprender a fazer de dona de casa, coisa que nunca me havia preocupado antes e assim, poucos dias depois, até as teias de aranha estavam agarradas às pernas das cadeiras da solitária sala de jantar... e o pó a nascer por todos os lados, até em sítios onde eu nunca pensei que caísse e se juntasse em tanta quantidade !

Passados poucos dias, um vizinho muito entusiasta por tudo quanto eram mecânicas e sabendo que desde 1959, eu me sentia atraído pela aviação, a ponto de ter construído um helicóptero dotado dum motor VW, o Rolando Canteiro, me vem dizer que na Quinta da Foz, aqui mesmo em Benavente, estavam a voar umas pessoas num pequeno avião feito de tubos e tela e, de imediato, eu fui ver do que se tratava.

Realmente lá estava um pequeno grupo de jovens, aí com 25 ou 30 anos, muito entretidos a aprender a pilotar aquela "coisa" estranha, mas positivamente muita engraçada.

Como eu já estava para cima dos 60 anos, para eles, devia ser um velho mais ou menos maluco, mas depois de observarem a minha curiosidade por aquela coisa, foram extremamente simpáticos para comigo.

No centro daquele grupo, estava uma senhora muito linda, loura e de olhos azuis, baixinha e gordinha, mas de sorriso pronto para toda a gente. Era Isabel para aqui, Isabel para ali, todos viviam à sua volta e vim a saber que se tratava duma escola de pilotagem de aviões Ultra Leves, ULM, que já vinha desde Évora, em 1985, depois da Lagoa da Albufeira em 1990, onde entrou em serviço a Isabel a juntar-se à equipa formada por Fernando Rodrigues, sócio dum tal Pedro Glória, homem dos 7 ofícios, da firma que então se chamava AEROSTATO, e piloto instrutor Carlos Franco, depois em Pegões, e agora em Benavente.

Quando da minha "entrada em cena", em 1991, já a firma tinha mudado de nome para AEROLAZER, e além de outros pilotos que entravam e saiam de cena, os mais assíduos, eram o Carlos Franco, o Fernando e o Miguel Serro, este último agora, piloto de longo curso.

(Carlos Franco, conversando com Fernando Rodrigues)

Aquilo era apaixonante de ver e ouvir os comentários, muitas vezes rocambolescos dos aflitos alunos a tentarem aprender a aterrar aquela "coisa" na pista, sem estragarem o aviãozinho.

Com as minhas constantes perguntas sobre o porquê de os alunos não terem feito assim ou assado, um dia, o Fernando depois de várias tentativas para me arranjar respostas, acabou por me convidar a dar uma "voadela", o que aceitei, embora cheio de nervoso miudinho, dos pés à cabeça...

Assim, lá me assentei do lado dos alunos, à esquerda do piloto-instrutor e fiz passar sobre o colo, aquele "arreio" com uma fivela de encaixe. Com este tipo de palavreado, vê-se mesmo que tenho vivido no campo, em terras de cavalos e toiros...

O Fernando descreveu-me pacientemente os "relógios" que estavam à minha frente e foi dizendo: Este aqui é o da temperatura do motor, este é o relógio que armazena as horas em que o motor está a funcionar, este aqui é o altímetro, este aqui é o conta rotações e este ali, apontando para uma coisa de plástico transparente, pendurada no tubo à minha esquerda, é o velocímetro...

Como o motor tinha dois magnetos, o interruptor de ignição, além de servir para parar o motor, também servia para testar os dois magnetos, um de cada vez.

Depois mostrou-me onde estava o acelerador e agarrando no "manche", moveu-o para todos os lados, mostrando-me o que acontecia nas asas de sustentação e na pequena da cauda, a estabilizadora.

Depois empurrou um pé de cada vez e mostrou-me que eles serviam não só para orientar a roda de nariz no solo, mas também o leme de direcção que estava lá na traseira do avião.

Antes de dar-se o arranque do motor, havia que colocar-se a alavanca do acelerador no mínimo.

Quanto ao interruptor de arranque do motor, aquilo era pois, muito diferente dos automóveis, pois não servia para por o motor em funcionamento, até porque ele nem tinha motor de arranque e só se conseguia por em funcionamento, com um valente puxão duma corda...

Como o depósito de combustível, era transparente e ficava mesmo por cima das nossas cabeças, bastava olhar para ele, para nos apercebermos da quantidade de combustível. Aquilo era, positivamente do mais simples mas funcional, que eu já havia visto.

Vamos ao voo ?- perguntou o Fernando, que já tinha uma mão no interruptor dos magnetos.

Como eu disse que estava pronto, ele voltou o interruptor para o lado direito, agarrou a corda do arranque, dando-lhe um forte puxão e de imediato, o motor arrancou.

Como o motor estava frio, ele travou o aparelho numa alavanca que estava presa ao manche, à laia de alavanca dos travões das bicicletas e motas, enquanto avançou o acelerador, até que o conta rotações se fixou sobre as 3000 RPM e ali ficou uns minutos, até que a temperatura do motor subiu para os 90º.

Com o motor já quentinho, foi ao interruptor de paragem e de verificação dos magnetos, e saltou um ponto para trás e depois mais um saltinho, verificando se o motor havia baixado umas 300 RPM e que era a indicação de que ambos estavam a funcionar correctamente.

Assim, e tudo em ordem de marcha, largou o travão e com os pés, vai de colocar o avião no início da pista para iniciar a corrida da descolagem, o que veio a acontecer de seguida, com uma brisa ligeira, bem apontada ao nariz do aparelho e que se podia observar numa manga de pano que se encontrava ao lado da pista.

Não se tinha ainda rolado mais de uns 50 metros, com o motor à máxima potência, muito perto das 7000 RPM, já o avião estava descolado e a ganhar altura rapidamente, enquanto lá em baixo, a Isabel, assentada ao lado duma mesinha, me acenava toda sorridente.

Rapidamente nos encontrámos a uns 100 metros de altura, indicados pelo altímetro que entretanto havia indo subindo lentamente desde o zero, enquanto o velocímetro ao meu lado esquerdo, ia subindo lentamente também.

Aí notei que o piloto havia baixado a potência do motor, colocando-o a umas 4000 RPM.

Aqui e perante o ruído ensurdecedor do motor e hélice, ouvi o Fernando gritar-me ao ouvido, para que agarrasse o manche e sentisse o que fazia o avião, ao mover-se aquela alavanca para os lados, fazendo variar umas "palhetas" (helerons) que se encontravam a toda a extensão do bordo de fuga das asas e logo verifiquei que o aparelho se inclinava para a esquerda e direita, à minha vontade, iniciando-se uma volta.

Depois o Fernando me disse para experimentar os pés, e realmente o aparelho reagia querendo fazer uma volta para a esquerda, quando carregava no pedal esquerdo e para a direita, carregando no pé direito.

Depois de uns minutos nestas experiência, o piloto me berrou que o avião era dele, agarrando o manche e, para me mostrar o que era uma "entrada em perda", a coisa mais perigosa em todos os aviões, quando feita perto do solo, puxou o manche à barriga, chamando-me a atenção para a velocidade do aparelho que começou a baixar drasticamente, até que quase parado, aí por volta das 20 milhas, mete o nariz em baixo e entra em queda livre ! Aquilo era mesmo assustador ! O altímetro mostrava agora que estávamos a cair rapidamente em direcção ao solo, e que todos os comandos haviam deixado de funcionar...

Aqui, o piloto levou o manche à frente e deixou o avião ganhar velocidade, o que veio a acontecer uns segundos depois, voltando-se novamente a ter os comandos na mão.

Entretanto, como havíamos perdido muita altura, o piloto acelerou o motor ao máximo, e puxando levemente o manche, o aparelho voltou a começar a ganhar altura e passados poucos segundos, já estávamos novamente na situação de voo horizontal e a uns 100 metros de altura da pista.

Entregando-me novamente os comandos, disse-me para ir nesta e naquela direcção, coisa em que não encontrei qualquer dificuldade, ora com um pouco de manche, ora com os pés.

Assim, o piloto voltou a dizer "o avião é meu", e aproando-o ao início da pista, cortou totalmente o acelerador, empurrando o manche à frente fortemente, e ai viemos nós por aí abaixo, a 50 ou 60 milhas, direitos ao solo, onde até parecia que iríamos partir o "trombil"... até que já muito perto da pista, a uns 4 ou 5 metros de altura, ele colocou o aparelho na horizontal, levando o manche ao centro e, como não havia agora motor a empurrá-lo, ele iria "entrar em perda", mas como já estava com as rodas muito perto do solo, tocou e rolou, perfeitamente e depois de alguns metros, estava parado, mesmo ao perto da mesa onde a Isabel tomava as suas notas.

Este meu primeiro contacto com um avião, tinha sido das experiências mais interessantes em que me havia metido e muito havia aprendido, mas muito teria que aprender mais...

Como eu sempre estava pronto para ajudar a carregar com os bidons de gasolina e outras coisas, eles nunca me aceitaram qualquer pagamento. E assim se iam passando os meses, até que lá aparecia mais uma oportunidade para outra voadela e lá ia eu aprender mais qualquer coisa, nalgum intervalo entre voos.

A minha aprendizagem foi um tanto rocambolesca, pois essas oportunidades só me apareciam de meses a meses, e em voos de 10 ou 15 minutos, mas curiosamente, eu não me havia esquecido do que havia já aprendido, pelo que estava sempre pronto a aprender mais coisas, como colocar o avião sem incidência demasiada das asas, para exigir menos do motor, as voltas mais apertadas, o aterrar com ventos mais ou menos laterais, o borregar nas situações complicadas em que os ventos atiram com o avião para fora da pista, quando já estava perto da velocidade de perda, dando toda a potência do motor e seguir, ganhando altura, para uma nova tentativa de aterragem etc.etc.

É-me grato recordar que nunca provoquei qualquer dano àqueles aviões, onde viria a voar muitas mais vezes sozinho depois.

Mas no fim duma bela tarde de Outubro, em 1993, e depois de já ter efectuado 97 aterragens e 6 horas de minúsculos voos, o Fernando me comunicou que eu estava pronto para ser "largado", ou seja, iria voar sozinho ! Aquilo era positivamente aterrador, mas como aquela tarde estava espantosamente calma de ventos e a brisa que existia, estava bem orientada na pista, lá arranjei a coragem suficiente para aceitar.

Quando vi o Fernando sair do seu banco e deixar-me ali entregue àquilo, quase morri de medo !!! mas enchi o peito de ar e...vai disto, avião destravado, motor em grande e sei lá, em menos de 40 metros, já estava no ar e não podia voltar para trás... Tinha mesmo de ganhar altura para ir dar a volta e aproar-me à pista. Assim, e como desconhecia a minha nova situação de "entrada em perda" com a falta do peso do Fernando, preferi ir bem lá para cima, a uns 200 metros e experimentei a baixar a potência do motor e olhando o velocímetro, poder decorar a que velocidade a iria encontrar, mas o raio do avião continuava a voar... até que ao aproximar-me das 25 milhas, ele aí vai de cabeça abaixo !

OK, pensei eu, agora, sabendo que ele só vai entrar em perda nessa tão baixa velocidade, já eu sabia como teria de fazer na aterragem. Assim, fui dar uma grande volta, até ter a pista bem na minha frente e vai disto...motor fora e manche à frente. Assim ali vou eu direitinho à pista e a vê-la crescer mais e mais, até que a meia dúzia de metros dela, trago o manche mais ou menos a meio, e espero que a velocidade caia para as tais 25 milhas que havia decorado, mantendo o aparelho bem alinhadinho no centro da pista. Vi passar das 40 para as 30 milhas e já com a pista por baixo de mim, atingi as 25 e aí estou eu a rolar na pista, como um valente !

Ainda me recordo da feliz expressão do piloto Fernando, José Lino e da Isabel, que me vieram dar um abraço, ainda com o avião parado e motor desligado, no meio da pista. -Parabéns Mário, eu sabia que eras capaz- adiantou o meu grande amigo Fernando.

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