domingo, 19 de novembro de 2006

Naquele Tempo...(II) por Prof. Martinho

( Naquele tempo... (continuação)

O doutoramento do Zé Correia que passou a ser conhecido por Dr Galena não foi epílego que tenha arrefecido o ânimo do trio que, ao invés se empenhou mais na solução do problema da recepção galenística.,definindo numa mesa do café Montanha a estratégia para levar de vencida a inoperância das montagens do Dr. Galena e, se possível fazer-lhe uma concorrência feroz. Assim, no cumprimento do 1º ponto dum plano maduramente reflectido ficou resolvido fazer-se uma revisão cuidadosa de todos os capítulos da Física que versassem ondas electromagnéticas e propagação das mesmas o que equivale a dizer que, sem uma motivação própria, tais capítulos passaram duma chatice a assuntos prioritários de todas as conversas , ao mesmo tempo que se formalizavam buscas nas livrarias e bibliotecas para descobrir literatura que ajudasse na resolução do desafio posto às capacidades destes jovens arredados doutras preocupações mundanas.


E foi assim que um dia o Martins apareceu com um livro adquirido na livraria Almedina , livro esse que viria a ser determinante na evolução e sequência de todo um processo de pesquisa para o fim
em vista. Tratava-se duma obra cujo autor era Alan Boursan ? e tinha por título
“ Construa um Posto de TSF”.


Ávidamente folheado, fomos tomando contacto com uma esquemática e descrição de circuitos, para nós estranhos e indecifráveis visto desconhecermos a simbologia própria de cada esquema e sua inter-relação com o seu valor traduzido em prática.


No livrinho estavam excluídas as galenas….era tudo válvulas A415…B406….B409 etc.etc.


tríodos em que se referenciava a firma fabricante no vidro espelhado e negro o que despertava um mundo de interrogações.


Nestes tempos, o altifante ficava sempre por fora.

Como éramos 3 e porque achámos graça à coincidência, empenhámo-nos em estudar todo o funcionamento dessas válvulas e lá voltámos à Física para apreciarmos com outros olhos a figura emblemática de Lee de Forest, o verdadeiro pai da electrónica.

Naquele tempo , o estudante, caldeado por dificuldades de toda a ordem, conseguiu sobreviver a muitos desaires aplicando uma espécie de automedicação psicológica de resistência, adoptando como divisa


o princípio Acção-Determinação. Em obediência à filosofia implícita no binómio e por analogia com as descrições dos alunos de medicina,o Martins propôs:


- Vamos procurar uns rádios velhos….abri-los…-desmanchá-los…



Acode o Neves : E retalhá-los na sala da anatomia….eh…eh…eh…!.


A primeira dádiva é uma gentil oferta duma senhora moradora na Rua da Sofia onde comparece o Martins acompanhado de quatro caloiros mobilizados para o transporte da máquina. Colocada esta sobre uma capa estendida no chão e pegando cada um numa ponta , iniciou-se o cortejo em direcção à rua Visconde da Luz , ponto nevrálgico do bulício académico tendo parado várias vezes para satisfazer a curiosidade de vários doutores que inquiriam sobre tão insólito desfile.


Dali rumaram, num eléctrico, para Santo António dos Olivais onde, na toca deste vosso criado ficou depositada e em espera aquela preciosidade com que nos havíamos de iniciar a nossa auspiciosa actuação no mundo das válvulas.


Mas eis que, consequente da evolução dos factos, é definida nova estratégia em que sobressai uma intenção de espionagem.


O Neves foi destacado para se relacionar com um bobinador que tinha a oficina junto da estação nova. A sua missão era recolher todos os conhecimentos necessários para a bobinagem de transformadores. O Martinho iria conversar sobre bola com o Ferreira da Rádio Mondego, oficina de reparações localizada num estranho gaveto da rua Corpo de Deus.. com a intenção escamoteada de recolher tudo o que fosse útil para a tarefa que se avizinhava- construir um rádio a válvulas…! O Martins, por sua vez , coligiria em caderno próprio todo o material informativo que funcionaria como guião.


À volta da banca do senhor Albano, sapateiro, que naquele tempo exerceu a profissão no rés do chão da Real República dos Kágados, figura muito estimada pela academia, foram ouvidas muitas anedotas, das quais eram um exímio narrador. Também ali o triunvirato deu a conhecer a tarefa que tinha pela frente e o senhor Albano, um dia, depois de tomar conhecimento de nova problemática, espreitando por cima dos óculos e interrompendo o brunir dumas gáspeas ofereceu a sua disponibilidade :-Os senhores doutores façam o rádio que eu faço uma caixa em madeira…. Seguiu-se um ruidoso exteriorizar de agradecimentos com o júbilo próprio daquela mocidade coimbrã desse tempo, sempre altruísta e nobre de sentimentos. O senhor Albano passou a fazer parte da equipa e foi nomeado mestre de caixas cum laude .(com louvor). Só com a eloquência do Padre António Vieira seria possível descrever cada passo deste dealbar estudantil.

O Neves, um moço imberbe e loiro fundiu peças em alumínio, torneou-as e fez uma máquina de bobinar verdadeiramente revolucionária que espantou os profissionais da época. Serrando, cortando e soldando, sem qualquer instrumento de medida a obra foi tomando forma até que um dia se procedeu à primeira experiência de recepção. Entretanto o senhor Albano havia reparado um velho altifalante de agulha colocando-lhe um novo cone de cartolina.E foi com solenidade que o Martins recitando César se voltou para o rádio: ALEA JACTA EST FIAT RADIO ( a sorte está lançada , faça-se rádio ) .Aquilo arrancou com uma enorme chiadeira porque era um primitivo circuito a reacção mas , reduzida esta , no respectivo condensador, logo se ouviram várias estações….!
Foi um delírio…!
Acalmados os ânimos, o grupo, inconformista com o inesperado sucesso partiu de imediato para novas experiências e logo vai de fabricar um novo jogo de bobinas com as quais era suposto sintonizar a onda curta.
Na verdade mal tínhamos acabado a sua instalação começámos a ouvir uma voz que, insistentemente repetia:
- Chamada geral de CT1AZ….América…..Zelândia….
Ficámos atónitos sem atinar com o significado daquilo…seria alguém que estava a pedir uma boleia para a América ou para a Nova Zelândia..!?
Indagámos e viemos a saber que se tratava dum senhor doutor que tinha um emissor e era director do observatório astronómico da universidade. Mais…morava numa rua do lado de cima do Jardim da Sereia.

E palavras não eram ditas já o trio estava a bater à porta duma vivenda na rua Pedro Monteiro onde eram visíveis muitos fios (supostas antenas).
O dr Barata Pereira ao ter conhecimento do motivo que ali nos levava introduziu-nos de imediato numa sala onde havia dois aparelhos sobre uma secretária tendo-nos explicado que um era o receptor e outro um emissor o qual, segundo nos informou tinha duas válvulas 42 em paralelo e era controlado a cristal. O receptor era uma peça elaborada que nos fez abrir a boca de espanto pela quantidade de botões que tinha no painel.
Muito receptivo e mostrando muita vontade em nos ser útil e agradável logo se mostrou disponível para fazer uma comunicação exemplificativa em telegrafia.
Mudos e quedos ouvimos aqueles pi pis sem entender nada do que significavam mas que o bom do dr nos ia traduzindo.. Depois, na qualidade de delegado distrital da rede dos emissores portugueses explicou-nos o funcionamento desta associação vincando o compromisso de irmandade dos seus membros onde não havia lugar para quezílias e mal-entendidos……que não havia qualquer discriminação social entre sócios, apenas se exigia educação, respeito e civismo. Fiel aos princípios que nortearam os radioamadores NAQUELE TEMPO sou ainda o CT1AP.

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