sábado, 4 de novembro de 2006

O HELICÓPTERO


UM SONHO TOMANDO REALIDADE

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Estava eu em 1951 e a apaixonar-me imenso pelos helicópteros, talvez porque não havia qualquer pista de aviões por perto, a não ser lá para os lados de Cascais, o que era demasiado longe para mim.

Por outro lado, aprender a voar, custava muito caro e o que eu ganhava como técnico de rádio, e acabado de me casar, não dava para por em prática aquele sonho.

Por outro lado, como gostava muito das mecânicas e já sabia manejar com certa destreza as máquinas de soldar a autogénio, electrogénio, tornos e berbequins, sentia que talvez fosse capaz de construir um pequeno helicóptero, pelo que fui a Lisboa e ali para a Rua do Ouro, encontrei numa biblioteca, uma minúsculo livro de bolso, dedicado à aviação vertical.

Nele, havia descrita toda a história rocambolesca de imensos entusiastas que se tinham resolvido, tal como eu desejava, a levar à prática as suas experiências e até se mostravam fotografias dos seus "loucos" intentos, mas sem qualquer descrição técnica.

Em todas as experiência descritas, eles haviam utilizado motores de automóvel, motores muito pesados naquela distante época, enquanto eu já havia tomado contacto com os motores VW que proliferavam em todo o mundo e pensei que talvez pudesse também fazer alguma coisa, usando um destes motores, mas... não havia dinheiro para tal... Malvado dinheiro !!!

Como a nossa Televisão RTP, estava a dar os seus primeiros passos, resolvi escrever-lhes a pedir uma entrevista, o que eles aceitaram e lá vou eu, todo nervoso, para Lisboa, para esse efeito, no dia marcado.

Aquilo era uma "bagunça" dos diabos, gente a correr por todos os lados e lá me apresentaram um dos locutores entrevistadores, que me "empurrou" para uma espécie de café que lá havia, e num canto, já com a cara toda pintada, ele me perguntou se devia chamar-me de "inventor"... ao que respondi que, nem pensar, pois eu era simplesmente um entusiasta.

Enquanto ele tomava o seu café, foi-me preparando para as respostas às perguntas que iria fazer e, como graças a Deus, eu nunca havia tido "papas na língua", estava preparado para abordar, em frente às câmaras e EM DIRECTO, os meus intentos e dificuldades.

Dali a minutos, já estávamos assentados em frente um ao outro, com a recomendação de não olhar as câmaras e num monitor ali perto, lá vejo aparecer a minha fronha...pelo que a adrenalina saltou-me ao coração, mas consegui aguentar.

Num quadro preto que havia indicado como necessário para poder desenhar rapidamente o "brinquedo" que estava a tentar por em prática, e mostrando um pequeno modelo que havia construído propositadamente para facilitar a minha explicação, em poucos minutos descrevi o aparelho e da dificuldade maior que seria a escolha do motor. Como eu já estava muito inclinado para o VW, aproveitei para me referir a ele e, de imediato aprecio um grande reboliço na sala, com pessoas a esbracejarem, uns muito indignados e outros a rir....

Eu devia ter "metido água", e assim foi, por ter feito propaganda a uma marca, à borla !

Mal acabou a entrevista, vieram-me chamar porque alguém estava ao telefone, a querer-me falar, e vim a saber que era um director da VW que me desejava entrevistar de imediato. E assim aconteceu, enquanto recebo de oferta, um motor VW reparado e em muito bom estado, que deveria ir buscar a certo armazém.

Em poucos minutos, já lá estava eu e, todo entusiasmado, ali venho para Benavente, não só com um motor, mas também uma caixa de velocidades. O meu sonho estava a tomar forma !!!

Nessa época, de lembrar que estávamos em 1952, havia uma oficina térrea ali perto do rio Sorraia, à saída de Benavente e a caminho de Salvaterra de Magos, que se chamava Branco & Carvalho e onde eu já tinha realizado várias coisas, incluindo uma torre de 12 metros, em arame de aço, para elevar as minhas antenas. Eles, pois, já me conheciam, e se dedicavam em especial, às alfaias agrícolas e dada a habilidade de as construir e rectificar para uso nos nossos terrenos, haviam granjeado um lugar cimeiro neste campo.

Mestres nos seus ofícios, eles levavam imenso tempo a experimentar e alterar o funcionamento das charruas, no campo, para ultrapassarem as que vinham do estrangeiro, pelo que as suas, estavam a encontrar no campo, uma grande procura.

Como todos os três, se juntavam no campo a apreciar a par e passo, como as charruas estrangeiras funcionavam, logo ali mesmo discutiam as possibilidades de as melhorar, o que vinha a acontecer uns dias depois.

Embora as pessoas mais importantes daquela oficina, fossem realmente um Branco e um Carvalho, havia uma outra figura, muito simpática também, de alcunha Zé Gordo, (pai do admirável António José Coimeiro), por ter sido extremamente magro... e que, depois de saberem dos meus intentos, me deixaram ir começar o meu projecto, lá para os fundos das oficinas.

Assim, e durante as minhas férias do emprego que entretanto eu havia conseguido na RARET, empresa americana fundada com o dinheiro de milhões de pessoas particulares e oriundas de imensos países, o meu "helicóptero" começou a tomar forma.

Para transportar o movimento do motor para a vertical, eu havia rodado a caixa de velocidades, 90º e além de ter bloqueado o diferencial, para só que um lado rodasse, havia retirado todos os carretos do seu interior, só lá mantendo os da primeira e segunda velocidade, para poder escolher no final a mudança mais apropriada, e conseguir um peso o mais leve possível.

O motor teria de ser arrancado à manivela, pois eu não queria manter o pesado motor de arranque, até porque ele me iria exigir mais o peso duma grande bateria... Aquilo tinha de ser o mais leve possível !

Esta "caranguejola" foi montada em cima de delgados tubos de aço soldados a Tobim e, como os planos já estavam articulados desde meses anteriores, tudo ia sendo adicionado rapidamente, perante o olhar mais ou menos desconfiado e espantado, do mestre Branco, Carvalho e Zé Gordo ...

O sistema mecânico que iria transportar a rotação do motor ao rotor (as pás) estava a dar muito trabalho, pois eu sabia que iria ter a minha vida pendurada por ali e havia que ter o máximo de cuidado...

O sistema do rotor principal, que inclui o global e cíclico

Para o sistema de anti-torque, aquilo também me estava a dar uma trabalhão, aproveitando sucatas daqui e dali, mas o projecto rocambolesco lá ia tomando forma, com o uso de rolamentos de esferas e carretos cónicos e alavancas para variação de passo do rotor de cauda .

Um banco duma velha motoreta foi agarrado em cima da caixa de velocidades, onde eu me iria escarranchar, a cavalo, e o movimento do hélice anti-torque, lá no fundo do aparelho, era feito por um delgado tubo de aço apoiado em várias chumaceiras de bronze que havia estado a tornear num pequeno torno que lá existia, parado a maioria do tempo, pois todos os trabalhos de torno da oficina, eram feitos em grandes tornos.

De uma grande "polie" enfiada no veio vertical, uma correia fazia rodar o hélice da cauda a cerca de 2000 RPM, e que me parecia ser o suficiente para obter o terrível anti-torque... Esse tambor, pode ver-se na foto principal, mesmo atrás dos rins do piloto.

Os rotores teriam de ser feitos em madeira e algumas ferramentas tiveram de ser engenhadas, para que os seus perfis fossem idênticos, tanto por cima como por baixo e a todo o seu comprimento. Depois foram polidos e envernizados, para ter o menor "drag" (dificuldade no avanço) possível.

Obviamente que teria de os ir construir numa carpintaria, e passados mais alguns dias, eles já estavam prontos a ser montados nos sistemas mecânicos do helicoptero.

Tenho pena de não me recordar do jovem carpinteiro que tanto me ajudou, mas não me lembro mesmo do seu nome...

Como eu já tinha alguns conhecimentos do Centro de Gravidade dos rotores, tive de adicionar alguns pesos nos bordos de ataque, para levar este CG para os 25% dos seus perfis.

Aquilo estava a tomar forma, e as férias de 21 dias, já estavam a terminar...

O aparelho na sua fase final

Por intermédio dum guincho, já havia pendurado o aparelho no ar, comigo a bordo, para me certificar do seu Centro de Gravidade.

Transportada aquele "geringonça" para um terreiro atrás de onde hoje é a fábrica do pão, e acompanhado de imensos curiosos que apareceram de todos os lados..., e depois de várias peripécies, porque o raio do motor, que sempre havia pegado facilmente, não havia forma de pegar...

Juntou-se àquela malta, o Fernando Côdea, filho do Domingos Maria, e que era um expert em motores, e depois de várias tentativas, lá arrancou o malvado motor, mas meio destrambelhado, mostrando falta de compressão e falha de cilindros, pelo que houve de jorrar gasolina para dentro dos cilindros e tentar lavá-lo do pó que se havia infiltrado pelos escapes livres, tirar e meter velas, aproximar um carro para usar a sua bateria...enfim, os diabos, mas lá pegou e se foi "arredondando".

Quando pareceu tudo estável, eu me escarranchei sobre a caixa de velocidade e dando a uma manivela para engatar a embraiagem, o grande rotor de 8 metros de diâmetro lá começou a rodar e a ganhar rotações. Aquilo até estava a ser giro de ver e empolgante, perante o tremendo ruído do escape livre do motor, e a gritaria de toda aquela gente curiosa que eu havia pedido para se afastar o máximo que pudesse, não fosse haver alguma surpresa desagradável e/ou, possivelmente fatal...

Eu estava imensamente interessado em saber se o motor teria ou não potência para aguentar o rotor nas 350 RPM, ao aumentar o passo global e vai de fazer subir o seu comando, que estava à minha mão esquerda. De imediato, começou a levantar-se uma poeirada dos diabos à volta do aparelho, o que obrigou todos os mais atrevidos, a dar uns passos atrás e as mulheres a agarrarem os seus lenços na cabeça e outras à procura dos seus, que já lhes tinham sido arrancados...

Como eu nunca havia estado ao pé dum helicóptero real, nem sabia dum facto da maior importância, e que se chama Precessão. Assim, quando tentei empurrar o manche em frente, o aparelho inclinou-se para um lado e todos os movimentos do chamado Prato Cíclico, estavam errados ! Que diabo estaria a acontecer ?

Uns anos mais tarde, vim a entender aquela questão da "precessão" e que é devida ao efeito de giroscópio, reflectindo-se os comandos num ângulo de 90º. Assim, teria de incluir essa precessão no prato cíclico do rotor, para que os comandos ficassem certos, o que iria demorar mais uns tempos.

Eu estava positivamente exausto e as férias haviam acabado ! Assim, dei as experiências por terminadas e o aparelho foi arrumado, para "ambos" irmos descansar...

Cerca de um ano depois, em 1959, vieram trabalhar em Benavente, na pulverização aérea de sobreiros, com lagartas, uns curiosos helicópteros franceses, de nome Djinn, modelo SO 1221, os primeiros que não tinham problema do torque, porque a sua turbina comprimia ar que era empurrado por dentro das duas pás e saindo, à laia de foguetes, pelos extremos do rotor. Aquilo era espantoso e funcionava maravilhosamente, pelo que foram muito fabricados.

Um Djinn em voo

A valente turbina de 300 HP, era posta em rotação por uma grande manivela lateral, onde duas pessoas podiam agarrar e embalar as turbinas até se dar a sua ignição. Para lhes dar uma ajuda, eu me havia agarrado àquela manivela várias vezes...

No entanto por qualquer motivo estranho aos meus conhecimentos, eles não ganharam futuro e nunca mais se ouviu falar deles.

Mas dada a sua presença em Benavente, fui logo conhecer o pessoal técnico que os acompanhou e meter conversa com o piloto, a quem convidei para ir ver o "meu helicóptero". Assim aconteceu, mas logo notei que ele, agarrando o manche e olhando para os movimentos do cabeçote de comando, global e cíclico, só me dizia que "não está bem...", mas não foi capaz de me dizer o porquê, aquilo por que estava eu tão interessado, a tal precessão.

Uns dias depois, ele me convidou para ir voar no Djiin, o que, obviamente, muito me encantou, até porque era o meu primeiro voo em helicóptero !

Só uma data de anos mais tarde, já em 1980, e perante um modelo teleguiado de helicoptero modelo JetRanger, que um amigo vindo de África, de nome António Martins, me ofereceu, mas bastante incompleto, vim a entender aquele malvado problema da precessão do comando do rotor, que uma data de anos antes, tanto me havia feito confusão.

Arrancando o helicoptero JetRanger tele-guiado

Este modelo ainda voo várias vezes, mas ao tentar pousá-lo em terrenos cheios de ervas...acabou sempre por se destruir, por se sentir agarrado pelas ervas, embora uns dias depois, já estivesse pronto para outra...depois de imensas reparações e rotores novos.

E assim acabou a odisseia dos helicópteros, ficando-me a imensa saudade da juventude onde tantos disparates e engenhocas fui fazendo... Estava mesmo ENGENHOCANDO...

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